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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Educar para a vida: o que o Brasil pode aprender em Educação com a Finlândia?



As crianças finlandesas são “preparadas para a vida”: cena de uma escola num subúrbio de Helsinque

Esta é a primeira parte do Projeto Escandinávia, bancado por nossos leitores. O foco não poderia ser mais oportuno: Educação num país que se tornou uma referência mundial no assunto, a Finlândia.

O texto é de Claudia Wallin, que se deslocou para Helsinque para investigar o caso de sucesso finlandês na Educação. Claudia é uma especialista em Escandinávia. Moradora de Estocolmo e casada com um sueco, é autora de um livro fundamental para quem deseja conhecer o espírito escandinavo: Um País sem Excelências e Mordomias.

Nos próximos dias, publicaremos as demais partes do Projeto — e um vídeo feito por Claudia em Helsinque.

Soltaram as bestas do Apocalipse, dirão os arautos do fim do mundo: nas escolas finlandesas, o filho do empresário e o filho do lixeiro estudam lado a lado, em um eficiente e igualitário sistema educacional que tornou-se um dos mais celebrados modelos de excelência em educação pública do mundo atual.

É o chamado milagre finlandês, iniciado na década de 70 e produzido em sua maior exuberância a partir dos anos 90. Em um espaço de 30 anos, a Finlândia transformou um sistema educacional medíocre, elitista e ineficaz, que amargava resultados escolares comparáveis a países como o Peru e a Malásia, em uma incubadora de talentos que alçou o país para o topo dos rankings mundiais de desempenho estudantil, e alavancou o nascimento de uma economia sofisticada e altamente industrializada onde antes jazia uma sociedade substancialmente agrária.

Trata-se, à primeira vista, de um enigma digno da Esfinge de Tebas: os finlandeses estão fazendo exatamente o contrário do que o resto do mundo faz na eterna busca por melhores resultados escolares – e está dando certo. O aparentemente ensandecido receituário finlandês inclui reduzir o número de horas de aula, e limitar testes e provas escolares a um mínimo tolerável.    

Atônitas delegações de educadores internacionais vasculham o paradoxal modelo finlandês em busca da fórmula do milagre insondável. E ouvem, dos finlandeses, uma constatação capaz de produzir mais batimentos cardíacos do que o medonho encontro com um tubarão no mar: a Educação de alta qualidade na Finlândia não é resultado apenas de políticas educacionais, eles dizem, mas também sociais.

 “O Estado de Bem-Estar social finlandês desempenha um papel crucial para o sucesso do modelo, ao garantir a todas as crianças oportunidades e condições iguais para um bom aprendizado”, diz o educador Pasi Sahlberg, um dos idealizadores da reforma das políticas educativas da Finlândia nos anos 90.

Sahlberg fala do que vejo nas instalações da Escola Viikki, um dos centros educacionais de ensino médio e fundamental da capital finlandesa. No amplo refeitório, refeições fartas e saudáveis são servidas diariamente aos estudantes. Serviços de atendimento médico e odontológico cuidam, gratuitamente, da saúde dos 940 estudantes. Todo o material escolar é também gratuito. Equipes de pedagogos e psicólogos acompanham cuidadosamente o desenvolvimento de cada criança, identificando na primeira hora problemas como a dislexia de um aluno e fornecendo apoio imediato. Saudáveis e bem alimentadas, as crianças estão mais preparadas para aprender neste país singular, onde mensalidades escolares não existem.

Pasi Sahlberg fala ainda do impacto fundamental do modelo de igualdade e justiça social criado gradualmente pelos finlandeses a partir do pós-guerra, a exemplo dos vizinhos escandinavos: saúde, Educação e moradia para todos, e uma vasta e solidária rede de proteção aos cidadãos.

“A desigualdade social, a pobreza infantil e ausência de serviços básicos têm um forte impacto negativo no desempenho do sistema educacional de um país”, pontua Sahlberg no livro “Finnish Lessons” (“Lições Finlandesas”), publicado pelo Teachers College da Columbia University.

 
Pasi Sahlberg, um dos renovadores da educação finlandesa: “O Estado de Bem-Estar social finlandês desempenha um papel crucial para o sucesso do modelo, ao garantir a todas as crianças oportunidades e condições iguais para um bom aprendizado”

O princípio da igualdade e da inclusão social marcou o desenvolvimento nos anos 70 da nova peruskoulu, a Educação obrigatória finlandesa que abrange o ensino fundamental e médio. Em uma decisão histórica do Parlamento finlandês, todas as crianças, independentemente de background sócio-econômico ou região de domicílio, passaram a ter acesso igualitário e gratuito a escolas de qualidade para cumprir os nove anos da Educação básica.

Nem todos, porém, concordavam com a ideia na época. Seguiu-se então um acalorado debate, neste país que acomoda 5,4 milhões de habitantes e mais de dois milhões de saunas.

Como que tomados pelo espírito dos mais destemperados analistas econômicos do Brasil, os críticos do novo sistema previram o caos: disseram que não seria possível ter as mesmas expectativas em relação a crianças de diferentes circunstâncias sociais. Argumentaram que o futuro da Finlândia como nação industrial estaria sob risco, uma vez que o nível educacional teria que ser ajustado para baixo a fim de acomodar os alunos menos favorecidos. Erraram, evidentemente.

O vital passo seguinte foi uma valorização sem precedentes do professor. A Finlândia lançou programas de formação de excelência para o magistério nas universidades do país, criou notáveis condições de trabalho e ampla autonomia decisória nas escolas, e paga bem seus professores. Mas o mais fundamental, diz Pasi Sahlberg, foi a criação de uma nova noção de dignidade profissional:

“Os professores adquiriram um alto grau de respeito e confiança em nossa sociedade. E os finlandeses continuam a considerar o magistério como uma carreira nobre, orientada principalmente por propósitos morais”, destaca Pasi Sahlberg, ex-diretor-geral no ministério finlandês de Educação e Cultura e atual professor visitante de Práticas Educacionais na Universidade de Harvard.

O terceiro ingrediente da fórmula finlandesa foi a elaboração de uma tresloucada teoria dos paradoxos. Talvez formulada em um estado coletivo de delirium tremens, a ideia provaria ser visionária.

Paradoxo 1:  Os alunos aprendem mais quando os professores ensinam menos

A experiência finlandesa desafia a lógica convencional, que prescreve mais horas de aula e maior quantidade de lições de casa como fórmula para turbinar o desempenho estudantil. Os dias são mais curtos nas escolas da Finlândia: são menos horas de aula do que em todas as demais nações industrializadas, segundo estatísticas da OECD.

“É importante que crianças tenham tempo de ser crianças”, diz a professora Erja Schunk na Escola Viikki, que também funciona como um centro de treinamento de professores da Universidade de Helsinque. “O mais importante é a qualidade do tempo em sala de aula, e não a quantidade”.

Nos Estados Unidos, um professor gasta aproximadamente o dobro do tempo ensinando na sala de aula por semana, em comparação com um professor finlandês.

“Dar seis horas de aula por dia é uma tarefa árdua, que deixa os professores cansados demais para se dedicar a outras tarefas importantes no trabalho de um educador, como planejar, reciclar-se e dar assistência cuidadosa ao aluno”, diz Pasi Sahlberg. Em uma típica escola finlandesa, os professores dão cerca de quatro aulas por dia.

Na lógica do modelo finlandês, o papel central da Educação pública não é criar indivíduos robotizados, e sim educar cidadãos dotados de espírito crítico e capazes de pensar de forma independente.

“Procuramos não dar respostas prontas aos alunos, na medida do possível, e sim orientá-los a pensar e refletir”, observa a diretora da Escola Viikki, Marja Martikainen. 

“A preocupação central da escola finlandesa não é atingir recordes de desempenho escolar, e sim ajudar a desenvolver as aptidões de uma criança a fim de formar indivíduos capazes de viver vidas felizes, dentro e fora do trabalho”.

Professores finlandeses também não acreditam que aumentar a carga de trabalho de casa dos estudantes leva necessariamente a um melhor aprendizado – especialmente se as lições forem entediantes exercícios que não desafiam a capacidade criativa do aluno. Pelas estatísticas da OECD, os estudantes finlandeses gastam menos tempo fazendo trabalho de casa do que os colegas de todos os outros países: cerca de meia hora por dia.

“Os alunos aprendem o que necessitam saber na sala de aula, e muitos fazem o dever de casa aqui mesmo, na própria escola. Assim, eles têm tempo para conviver com os amigos e se dedicar às coisas que gostam de fazer fora da escola, o que também é importante”, diz o professor Martti Mery na Escola Viikki, que está situada em um campus da Universidade de Helsinque. 

Diretor e aluno numa escola: diversão também é fundamental

Como no centro escolar de Viikki, as escolas finlandesas são tipicamente pequenas, e o tamanho das classes é em média de 20 alunos.

Na fase pré-escolar, a prioridade é desenvolver a auto-confiança das crianças: os dias na escola são preenchidos com tarefas como aprender a se orientar desacompanhadas em uma floresta, ou amarrar sozinhas seus patins de gelo.

Paradoxo 2: Os alunos aprendem mais quando têm menos provas e testes

Estudantes finlandeses só suam demais nas infernais saunas do país: seu sistema educacional não acredita na eficácia de uma alta frequência de provas e testes, que por isso são aplicados com pouca regularidade. Apesar disso, a Finlândia brilha nos rankings globais de Educação, ao lado dos países com melhor desempenho escolar do mundo.

Milagre? A filosofia finlandesa é de que o foco principal dos professores deve ser ajudar os alunos a aprender sem ansiedade, a criar e a desenvolver a curiosidade natural, e não simplesmente a passar em provas.

“A pressão do modelo tradicional de ensino traz consequências dramáticas para os alunos, como o medo, o tédio e o receio de assumir riscos”, ensina o educador Pasi Sahlberg.

Relatórios do PISA indicam que apenas 7% dos alunos finlandeses sentem-se ansiosos ao estudar matemática. Já no rígido sistema de ensino do Japão, que ostenta altos níveis de desempenho escolar enquanto registra recordes de suicídio entre estudantes, esse índice chega a 52%.

À minha volta, nas salas de aula da escola Viikki, o ambiente é tranquilo e descontraído. Não há uniformes escolares, e muitos estudam descalços – refletindo o clima doméstico das casas escandinavas, onde ninguém usa sapatos.

As crianças finlandesas iniciam sua educação formal aos sete anos de idade, e a escola primária é praticamente uma zona livre de testes. A fim de evitar que as crianças sejam categorizadas de acordo com sua performance, o sistema finlandês virtualmente aboliu a avaliação por notas escolares nos cinco primeiros anos da peruskoulu.

Nos anos seguintes, a avaliação é feita com base em testes elaborados pelo professor e no desempenho do aluno em sala de aula, além de uma ampla avaliação de cada estudante realizada coletivamente pelos professores ao fim de cada semestre. Os que precisam de maior assistência no ensino, recebem atenção particular: a filosofia finlandesa preza a crença de que todas as crianças têm o potencial de aprender, se tiverem apoio e oportunidades adequadas.

O único exame padronizado de avaliação escolar na Finlândia é o concurso nacional prestado pelos estudantes ao final dos nove anos do ensino obrigatório, em que o conhecimento é testado através de dissertações desenvolvidas pelo aluno nas diferentes disciplinas como exigência para o acesso à educação superior.

E repetir de ano, na forma convencional, é algo que também não existe na Finlândia. Em vez de uma avaliação geral dos alunos ao fim de cada ano, as escolas finlandesas utilizam módulos curriculares em diferentes áreas do conhecimento. Assim, um aluno repete apenas os cursos nos quais seu desempenho não foi satisfatório.

Todos os aspectos por trás do sucesso finlandês parecem ser, assim, o oposto do que se faz na maior parte do mundo, onde a competição, a carga de provas e aulas, a uniformização do ensino e a privatização são via de regra os princípios dominantes.

“Exercer controles rígidos sobre as escolas e os alunos, pagar os professores com base no desempenho dos estudantes, entregar a liderança das escolas a especialistas em gerenciamento ou converter escolas públicas em privadas, são ideias que não têm lugar no repertório finlandês de desenvolvimento da educação em um país”, diz o educador Pasi Sahlberg.

Dizem ainda os finlandeses que o dinheiro não é “a” única solução para melhorar o desempenho de um sistema educacional.

“Os gastos da Finlândia com educação, da ordem de 6,3% do PIB, são na verdade bastante próximos à média registrada nos países da OECD em todos os níveis - com exceção da Educação superior, em que estamos em oitavo lugar na lista dos que mais investem”, diz Niklas Nikanorov, do Ministério da Educação e Cultura finlandês.

“A eficiência do sistema é portanto mais importante para uma boa performance educacional do que o nível de gastos”, deduz o educador Pasi Sahlberg.

A História

Até o fim dos anos 60, a Finlândia parecia acreditar mais no Papai Noel da sua Lapônia do que no poder transformador da Educação. Apenas 10 por cento dos adultos completavam o ensino secundário. A maior parte dos jovens abandonava os estudos após completar seis ou sete anos do ensino fundamental e médio.

As oportunidades eram limitadas, e o acesso desigual: apenas as crianças que viviam nas maiores cidades e municípios tinham acesso a escolas públicas, ou a instituições privadas que muitas famílias não tinham condições de pagar.

Um diploma universitário era considerado, na época, um troféu excepcional – apenas 7% da população tinham Educação superior. Em todas as faixas de aprendizado, a Finlândia era um símbolo de atraso em relação aos vizinhos escandinavos.

Mas a história da Finlândia sempre foi marcada pela resiliência do seu povo, que só conquistou a independência em 1917 – depois de seis séculos sob o domínio do Reino da Suécia, e mais de cem anos como Grão-Ducado do Império Russo e seus cinco czares.

Na década de 70, a nação foi convocada a mudar. Uma Educação pública estelar passou a ser percebida como a base fundamental para a criação de um futuro menos medíocre: desenvolver o capital humano do país tornou-se a missão primordial do Estado finlandês. A reforma levou o país, enfim, aos patamares do mundo desenvolvido.

Nos anos 90, o país anunciou uma revolução ainda mais radical:

“Estamos criando uma nova cultura de Educação, e este é um caminho sem volta”, declarou o então diretor-geral do Conselho Nacional de Educação finlandês, Vilho Hirvi, chamando a sociedade a participar da discussão sobre os rumos da reforma:

“Não se pode educar uma nação à força”, completou o sábio Hirvi.

Associações de professores, políticos, pais, membros da academia e diferentes setores da sociedade contribuíram para a criação dos novos e revolucionários paradigmas da Educação no país, que rejeitavam a fórmula convencional aplicada na maior parte do mundo como receita para melhorar o desempenho escolar.

“Particularmente significativo foi o papel desempenhado por variadas organizações da sociedade civil”, destaca Pasi Sahlberg, que foi um dos conselheiros do Ministério da Educação finlandês nos anos 90.

A transformação do sistema foi profunda, e rápida. Como resultado da nova política de Educação, já no fim dos anos 90 a peruskoulu finlandesa tornou-se líder mundial em matemática, ciências e interpretação.

Os primeiros resultados do PISA publicados em 2001 surpreenderam os próprios finlandeses: em todos os domínios acadêmicos, a Finlândia despontou no topo do ranking mundial. E permanece, até hoje, entre os mais destacados membros do clube.

“Atualmente, 99,4% dos alunos completam com êxito o peruskoulu compulsório”, diz Niklas Nikanorov, do Ministério da Educação e Cultura finlandês.

Com o acesso gratuito às universidades e instituições de ensino técnico e profissionalizante, a Educação de nível superior também passou a ser uma oportunidade igual para todos: a Educação na Finlândia é livre de mensalidades para todos, do pré-escolar ao PhD.

Mais: a partir dos 17 anos de idade, todos os estudantes finlandeses contam com generosos benefícios do governo, que chegam a 337 euros mensais (cerca de 1,230 reais). Além disso, têm acesso a benefícios extras como ajuda de custo de até 200 euros por mês para pagar o aluguel de moradia, e recursos para complementar as despesas com transporte. Além disso, todos têm direito a um empréstimo especial para se manter durante o período de estudos, que chega a 400 euros mensais e só precisa ser quitado em sua totalidade quando o estudante completa 60 anos de idade.

A Lição da Finlândia

 A Finlândia diz ter aprendido uma lição: políticas de Educação efetivas devem estar necessariamente interligadas às demais políticas sociais, afirma o educador Pasi Sahlberg:

“As pessoas na Finlândia têm um profundo senso de responsabilidade compartilhada, e importam-se não apenas com as próprias vidas, mas também com o bem-estar dos outros”, ele observa.

“Os cuidados com o bem-estar da criança começam antes mesmo de ela nascer, e se estendem até a idade adulta. As creches públicas são um direito garantido para todas as crianças, que também têm acesso igualitário a todo tipo de serviço básico. A Educação em nosso país é considerada um bem público. É portanto protegida, na Constituição do país, como um direito humano básico.”

As estatísticas apontam o caminho, ele diz:

“As sociedades igualitárias têm cidadãos com grau de instrução mais elevado, raros casos de evasão escolar, menores taxas de obesidade, melhores indicadores de saúde mental e índices mais reduzidos de ocorrência de gravidez entre adolescentes, em relação aos países nos quais que a distância entre ricos e pobres é maior”, enfatiza Sahlberg.

Filhos de imigrantes se beneficiam também da Educação finlandesa

Diz-se que o modelo nórdico do Estado de Bem-Estar Social teve como base três ideias políticas centrais: o legado dos camponeses livres, o espírito do capitalismo e a utopia do socialismo.

“Igualdade, eficiência e solidariedade, os princípios essenciais destas três ideias políticas, formam a raiz do terreno sólido no qual a política de Educação finlandesa foi criada”, resume Erkki Aho, diretor-geral do Conselho Nacional de Educação da Finlândia entre 1973 e 1991.

Os gastos realizados para concretizar o ideal de um Estado de Bem-Estar social foram considerados não como um custo necessário – e sim como um investimento lúcido para alavancar a produtividade do país.

“É interessante ainda notar que a expansão do setor educacional na Finlândia coincidiu com uma impressionante transformação do país, que em um período relativamente curto deixou de ser uma sociedade agrária e atrasada para se tornar uma economia altamente industrializada, baseada no conhecimento”, diz Pasi Sahlberg.

Sahlberg resume assim o pensamento finlandês sobre a educação pública de qualidade:

“É uma obrigação moral, pois o bem-estar e em última análise a felicidade de um indivíduo depende do conhecimento, das aptidões e das visões de mundo que são proporcionadas por uma Educação de qualidade.”


É também um imperativo econômico, uma vez que a riqueza das nações depende cada vez mais de know-how e conhecimento”.


quarta-feira, 3 de junho de 2015

Claudio Naranjo: “A Educação atual só produz zumbis”

O psiquiatra chileno diz que investir numa didática afetiva é a saída para estimular o autoconhecimento dos alunos e formar seres autônomos e saudáveis

A DIDÁTICA DO AFETO
O psiquiatra Claudio Naranjo.
A Educação é a única forma de
mudar o mundo (Foto Divulgação)
Por Flavia Yuri Oshima/Revista Época

O psiquiatra chileno Claudio Naranjo tem um currículo invejável. Formou-se em medicina na Universidade do Chile, especializou-se em psiquiatria em Harvard e virou pesquisador e professor da Universidade de Berkeley, ambas nos EUA. Desenvolveu teorias importantes sobre tipos de personalidade e comportamentos sociais. 

Trabalhou ao lado de renomados pesquisadores, como os americanos David McClelland e Frank Barron. Publicou 19 títulos. Sua trajetória pode ser classificada como irrepreensível pelo mais ortodoxo dos avaliadores. Ele é, inclusive, um dos indicados ao Nobel da Paz deste ano. É comum, no entanto, que Naranjo seja chamado, em tom pejorativo, de esotérico e bicho grilo. Há mais de três décadas, ele e a fundação que leva seu nome pregam que os educadores devem ser mais amorosos, afetivos e acolhedores. Ele defende que essa é a forma mais eficaz de ajudar todos os alunos – não só os melhores – a efetivamente aprender “e assim mudar o mundo”, como ele diz. Claudio Naranjo esteve no Brasil para participar do evento sobre educação básica Encontro de Educadores.

ÉPOCA – O senhor é psiquiatra e desenvolveu teorias importantes em estudos de personalidade. Hoje trabalha exclusivamente com Educação. Por que resolveu se dedicar a esse tema?
Claudio Naranjo – Meu interesse se voltou para a Educação porque me interesso pelo estado do mundo. Se queremos mudar o mundo, temos de investir em Educação. Não mudaremos a economia, porque ela representa o poder que quer manter tudo como está. Não mudaremos o mundo militar. Também não mudaremos o mundo por meio da diplomacia, como querem as Nações Unidas – sem êxito. Para ter um mundo melhor, temos de mudar a consciência humana. Por isso me interesso pela Educação. É mais fácil mudar a consciência dos mais jovens.

ÉPOCA – Quais os problemas do modelo educacional atual na opinião do senhor?
Naranjo – Temos um sistema que instrui e usa de forma fraudulenta a palavra Educação para designar o que é apenas a transmissão de informações. É um programa que rouba a infância e a juventude das pessoas, ocupando-as com um conteúdo pesado, transmitido de maneira catedrática e inadequada. O aluno passa horas ouvindo, inerte, como funciona o intestino de um animal, como é a flora num local distante e os nomes dos afluentes de um grande rio. É uma aberração ocupar todo o tempo da criança com informações tão distantes dela, enquanto há tanto conteúdo dentro dela que pode ser usado para que ela se desenvolva. Como esse monte de informações pode ser mais importante que o autoconhecimento de cada um? O nome Educação é usado para designar algo que se aproxima de uma lavagem cerebral. É um sistema que quer um rebanho para robotizar. A criança é preparada, por anos, para funcionar num sistema alienante, e não para desenvolver suas potencialidades intelectuais, amorosas, naturais e espontâneas.

ÉPOCA – Como é possível mudar esse modelo?
Naranjo – Podemos conceber uma Educação para a consciência, para o desenvolvimento da mente. Na fundação, criamos um método para a formação de educadores baseado em mais de 40 anos de pesquisas. O objetivo é preparar os professores para que eles se aproximem dos alunos de forma mais afetiva e amorosa, para que sejam capazes de conduzir as crianças ao desenvolvimento do autoconhecimento, respeitando suas características pessoais. Comprovamos por meio de pesquisas que esse é o caminho para formar pessoas mais benévolas, solidárias e compassivas. Hoje a Educação é despótica e repressiva. É como se Educar fosse dizer faça isso e faça aquilo. O treinamento que criamos está entre os programas reconhecidos pelo Fórum Mundial da Educação, do qual faço parte. Já estive com ministros da Educação de dezenas de países para divulgar a importância dessa abordagem.

ÉPOCA – E qual foi a recepção?
Naranjo – A palavra amor não tem muita aceitação no mundo da Educação. Na poesia, talvez. Na religião, talvez. Mas não na Educação. O tema inteligência emocional é um pouco mais disseminado. É usado para que os jovens tomem consciência de suas emoções. É bom que exista para começar, mas não tem um impacto transformador. A inteligência emocional é aceita porque tem o nome inteligência no meio. Tudo o que é intelectual interessa. Não se dá importância ao emocional. Esse aspecto é tratado com preconceito. É um absurdo, porque, quando implementamos  uma didática afetuosa, o aluno aprende mais facilmente qualquer conteúdo. Os ministros da Educação me recebem muito bem. Eles concordam com meu ponto de vista, mas na prática não fazem nada. Pode ser que isso ocorra por causa da própria inércia do sistema. O ministro é como um visitante que passa pelos ministérios e consegue apenas resolver o que é urgente. Ele mesmo não estabelece prioridades. Estou mais esperançoso com o novo ministro da Educação de vocês (Renato Janine Ribeiro). Ele me convidou para jantar, para falarmos sobre minhas ideias. É a primeira vez que a iniciativa parte do lado do governo. Ele é um filósofo, pode fazer alguma diferença.

>> "Quando há amor na forma de ensinar, o aluno aprende mais facilmente qualquer conteúdo"

ÉPOCA – Para quem decidiu ser professor, não seria natural sentir amor, compaixão e vontade de cuidar do aluno?
Naranjo – Uma vez dei uma aula a um grupo de estudantes de pedagogia na Universidade de Brasília. Fiquei muito decepcionado com a falta de interesse. Vendo minha expressão, o coordenador me disse: “Compreenda que eles não escolheram ser Educadores. Alguns prefeririam ser motorista de táxi, mas decidiram educar porque ganham um pouco mais e têm um pouco mais de segurança. Estão aqui porque não tiveram condições de se preparar para ser advogados ou engenheiros ou outra profissão que almejassem”. Isso acontece muito em locais em que a Educação não é realmente valorizada. Quem chega à escola de Educação são os que têm menos talento e menos competência. Não se pode esperar que tenham a vocação pedagógica, de transmitir valores, cuidar e acolher.

ÉPOCA – O senhor diz que o sistema de Educação atual desperdiça talentos, rotulando-os com transtornos e distúrbios. Pode explicar melhor esse ponto?
Naranjo – Humberto Maturana, cientista chileno, me contou que a membrana celular não deixa entrar aquilo que ela não precisa. A célula tem um modelo em seus genes e sabe o que necessita para construir-se. Um eletrólito que não lhe servirá não será absorvido. Podemos usar essa metáfora para a Educação. As perturbações da Educação são uma resposta sã a uma Educação insana. As crianças são tachadas como doentes com distúrbios de atenção e de aprendizado, mas em muitos casos trata-se de uma negação sã da mente da criança de não querer aprender o irrelevante. Nossos estudantes não querem que lhe metam coisas na cabeça. O papel do educador é levá-lo a descobrir, refletir, debater e constatar. Para isso, é essencial estimular o autoconhecimento, respeitando as características de cada um. Tudo é mais efetivo quando a criança entende o que faz mais sentido para ela.

ÉPOCA – Por que a Educação caminhou para esse modelo?
Naranjo – Isso surgiu no começo da era industrial, como parte da necessidade de formar uma força de trabalho obediente. Foi uma traição ao ideal do pai do capitalismo, Adam Smith, que escreveu A riqueza das nações. Ele era professor de filosofia moral e se interessava muito pelo ser humano. Previu que o sistema criaria uma classe de pessoas dedicadas todos os dias a fazer só um movimento de trabalho, a classe de trabalhadores. Previu que essa repetição produziria a deterioração de suas mentes e advertiu que seria vital dar a eles uma Educação que lhes permitisse se desenvolver, como uma forma de evitar a maquinização completa dessas pessoas. Sua mensagem foi ignorada. Desde então, a Educação funciona como um grande sistema de seleção empresarial. É usada para que o estudante passe em exames, consiga boas notas, títulos e bons empregos. É uma distorção do papel essencial que a Educação deveria ter.

>> O professor é o fator que mais influencia na Educação das crianças

ÉPOCA – Há algo que os pais possam fazer?
Naranjo – Muitos pais só querem que seus filhos sigam bem na escola e ganhem dinheiro. Acho que os pais podem começar a refletir sobre o fato de que a Educação não pode se ocupar só do intelecto, mas deve formar pessoas mais solidárias, sensíveis ao outro, com o lado materno da natureza menos eclipsado pelo aspecto paterno violento e exigente. A Unesco define Educar como ensinar a criança a ser. As Constituições dos países, em geral, asseguram a liberdade de expressão aos adultos, mas não falam das crianças. São elas que mais necessitam dessa liberdade para se desenvolver como pessoas sãs, capazes de saber o que sentem e de se expressar. Se os pais se derem conta disso, teremos uma grande ajuda. Eles têm muito poder de mudança.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Chomsky: sobre a precarização do trabalho e da Educação na universidade

O crescimento da contratação de temporários nas universidades dos EUA é parte de um modelo de negócios projetado para reduzir os custos do trabalho.

O que se segue é uma transcrição editada de observações feitas por Noam Chomsky via Skype, no dia 4 de fevereiro de 2014, a membros e apoiadores da Adjunct Faculty Association [NT] do Sindicato dos Metalúrgicos, em Pittsburgh. As observações de Chomsky foram provocadas por perguntas feitas por Robin Clarke, Adam Davis, David Hoinski, Maria Somma, Robin J. Sowards, Matthew Ussia e Josué Zelesnick. A transcrição ficou a cargo de Robin J. Sowards e foi editada pelo próprio Chomsky.

Sobre o modelo de contratação de professores
Isso faz parte do atual modelo de negócios. É o mesmo que ocorre com a contratação de trabalhadores temporários na indústria ou com o que eles chamam de "associados" na Wal-Mart, funcionários que não tem direito a benefícios. É parte de um modelo de negócios privados projetado para reduzir os custos do trabalho e aumentar o servilismo no trabalho. A transformação das universidades em corporações, como tem ocorrido sistematicamente ao longo da última geração, como parte do assalto neoliberal geral sobre a população, veio acompanhada de um modelo de negócios onde o que importa é o lucro no final do balanço.

Os verdadeiros proprietários são os gerentes (ou legisladores, no caso das universidades estaduais) e eles querem manter os custos baixos e assegurar que o trabalho seja dócil e obediente. A melhor maneira de fazer isso é, fundamentalmente, contratar temporários. Assim como a contratação de temporários foi se disseminando na sociedade no período neoliberal, o mesmo fenômeno ocorreu nas universidades. A ideia é dividir a sociedade em dois grupos. Um grupo é às vezes chamado de “plutonomia” (plutonomy, um termo usado pelo Citibank para aconselhar seus investidores sobre onde aplicar seus recursos), o setor top da riqueza, concentrado principalmente nos Estados Unidos. O outro grupo, o restante da população, é um “precariado”, as pessoas que vivem uma existência precária.

Esta ideia, por vezes, torna-se bastante evidente. Quando Alan Greenspan testemunhou perante o Congresso, em 1997, sobre as maravilhas da economia, ele disse diretamente que uma das bases para o seu sucesso econômico era o que ele chamou de “maior insegurança dos trabalhadores”. Se os trabalhadores são mais inseguros, isso é muito “saudável” para socieadade, porque eles não ficar perguntando sobre seus salários, não vão entrar em greve, não vão pedir repartição de lucros, e vão servir a seus patrões de bom grado e de forma passiva. E isso é ótimo para a saúde econômica das empresas.

Na época, todo mundo achou o comentário de Greenspan muito razoável, a julgar pela falta de reação e pelo grande sucesso que ele gozava. Vamos transferir isso para as universidades: como garantir “maior insegurança dos trabalhadores”? Fundamentalmente, não garantindo o emprego, mantendo as pessoas penduradas em um galho que pode ser serrado a qualquer momento, de modo que elas saibam que é melhor calar a boca, receber pequenos salários, fazer o seu trabalho e se forem agraciados com a autorização para servir em condições miseráveis por mais um ano, devem se contentar com isso e não pedir nada a mais. Essa é a receita das corporações para manter uma sociedade eficiente e estável. Como a suniversidades se moveram na direção desse modelo de negócios, a precariedade é exatamente o que está sendo imposto. E nós vamos ver mais e mais do mesmo.

Há outros aspectos que também são bastante conhecidos na indústria privada, como um grande aumento dos níveis de administração e burocracia. Afinal, se você precisa controlar as pessoas, precisa ter uma força administrativa que faça isso. Assim, nas empresas dos EUA, mais do que em outros lugares, há sucessivos níveis de administração, uma forma de desperdício econômico, mas útil para o controle e a dominação. O mesmo ocorre em muitas universidades. Nos últimos 30, 40 anos, houve um aumento muito acentuado da proporção de administradores em relação ao número de professores e alunos. O nível de professores e alunos até aumentou, mas o de administradores subiu mais proporcionalmente.

Há um livro muito bom sobre esse tema, escrito por um conhecido sociólogo, Benjamin Ginsberg, chamado “The Fall of the Faculty: The Rise of the All-Administrative University and Why It Matters” (Oxford University Press, 2011), que descreve em detalhes esse estilo de administração com seus diversos níveis de administradores que, é claro, são muito bem pagos. Isso inclui os administradores profissionais, como os reitores, por exemplo, que costumavam ser membros do corpo docente que eram deslocados por alguns anos para exercer atividade administrativa e, depois, voltavam para seus afazeres acadêmicos. Agora, na maioria dos casos, eles são profissionais que contratam sub-reitores e secretários, fazendo proliferar toda uma estrutura administrativa. Esse é outro aspecto importante do atual modelo de negócios.

Mas o uso de mão de obra barata e fragilizada no trabalho é uma prática tão antiga quanto a iniciativa privada e os sindicatos surgiram em resposta a ela. Nas universidades, trabalho vulnerável e barato significa professores auxiliares e estudantes de pós-graduação. Alunos de graduação são ainda mais vulneráveis, por razões óbvias. A ideia é transferir as atividades universitárias aos trabalhadores precários, o que melhora a disciplina e o controle, e também permite a transferência de recursos para outras finalidades que não a educação. Os custos, naturalmente, são arcados pelos estudantes e pelas pessoas que são atraídas para estas ocupações vulneráveis. É uma característica normal dessa sociedade de gestão de negócios transferir os custos para o povo.

Os economistas cooperam com esse esquema. Suponha que você encontre um erro em sua conta corrente e ligue para o banco para tentar corrigi-lo. Bem, você sabe o que acontece. Vai telefonar e ouvirá uma mensagem gravada dizendo: “Nós amamos você, aqui está um menu de opções”. Talvez esse menu tenha o que você está procurando, talvez não. Se acontecer de você encontrar a opção correta, ouvirá alguma música e, de vez em quando, uma voz dirá: “Aguarde, por favor, enquanto transferimos a sua ligação”. Finalmente, passado algum tempo, você até poderá ser atendido por um ser humano a quem poderá fazer uma breve pergunta. Os economistas chamam isso de “eficiência”, um sistema que reduz custos trabalhistas para o banco. É claro que impõe custos para você e esses custos são multiplicados pelo número de usuários, que pode ser enorme, mas que não é contado como um custo no cálculo econômico.

Se você olhar o modo como a sociedade funciona, verá esse tipo de prática em todo lugar. Assim, a universidade impõe custos aos alunos e professores que não são apenas temporários, mas colocados em um modelo que garante que eles não terão segurança. Tudo isso é perfeitamente normal dentro de modelos de negócios corporativos. É prejudicial para a educação, mas a educação não é seu objetivo.

Na verdade, se olharmos para mais longe, veremos que as raízes desse modelo são mais profundas ainda. Se voltarmos para o início dos anos 1970, quando muitas dessas coisas atuais começaram, havia muita precoupação em praticamente todo o espectro político sobre os temas do ativismo dos anos 1960.

Essa época foi chamada de “era dos problemas”, porque o país estava finando civilizado, e isso é perigoso. As pessoas estavam se tornando politicamente engajadas e estavam tentando conquistar direitos para grupos com os chamados “interesses especiais”, como as mulheres, os trabalhadores, os agricultores, os jovens, os idosos, e assim por diante. Isso levou a uma reação grave, o que foi muito evidente.

No final liberal do espectro político, há um livro chamado The Crisis of Democracy: On the Governability of Democracies (New York University Press, 1975 - Crise da Democracia: Sobre a Governabilidade das Democracias), um relatório elaborado por Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watanuki para a Comissão Trilateral, uma organização de liberais internacionalistas. O governo Carter saiu praticamente todo de suas fileiras. Eles estavam preocupados com o que chamavam de “crise da democracia”. Para eles, o problema é que havia um “excesso de democracia”. Na década de 1960, havia pressões partindo de diversos setores da população, esses “interesses especiais” que referi, para tentar obter direitos na arena política. Para os autores, estava se colocando muita pressão sobre o Estado e isso era errado. Havia um “interesse especial” que eles deixaram de fora, que era o do setor empresarial. Mas esse interesse, para eles, se confundia com o “interesse nacional” de que não seria o caso de falar dele.

Os demais “interesses especiais” estavam causando problemas e esses autores disseram: “nós temos que ter mais moderação na democracia”, o público tem de voltar a ser passivo e apático. Eles estavam particularmente preocupados com as escolas e as universidades, que não estavam fazendo devidamente seu trabalho de “doutrinar os jovens”. O ativismo estudantil, sua participação nos movimentos de direitos civis, anti-guerra, feminista, ambiental, entre outros, mostrava que os jovens não estavam sendo doutrinados corretamente.

Como se doutrina os jovens? Há certo número de modos de fazer isso. Um deles é sobrecarregá-los com uma dívida irremediavelmente pesada. A dívida é uma armadilha, especialmente a dívida do estudante, que é enorme, muito maior do que a dívida do cartão de crédito. É uma armadilha para o resto de sua vida, porque as leis são projetadas para que você não fique de fora. Se uma empresa, por exemplo, fica muito endividada, ela pode declarar falência, mas os indivíduos quase nunca podem se aliviar de uma dívida por meio da falência. Eles podem até mesmo tirar sua seguridade social se você não pagar. Essa é uma técnica disciplinar. Eu não digo que foi conscientemente produzida para ter esse efeito, mas certamente tem esse efeito.

É difícil argumentar que há algum fundamento econômico para ele. Basta dar uma olhada pelo mundo: na maioria dos casos, o ensino superior é gratuito. Em países com os mais elevados índices de educação, como a Finlândia, o ensino superior é gratuito. Em um país capitalista rico bem sucedido como a Alemanha, é gratuito. No México, um país pobre, com padrões de educação bastante decentes considerando as dificuldades econômicas que enfrentam, é gratuito. Agora olhe para os Estados Unidos: se voltarmos para os anos 1940 e 50, veremos que o ensino superior estava muito perto da gratuidade. O GI Bill deu educação gratuita para um grande número de pessoas que, sem isso, nunca teria conseguido ir para a faculdade.

Foi muito bom para eles, para a economia e para a sociedade, sendo uma das razões para a elevada taxa de crescimento econômico naquele período. Mesmo em faculdades particulares, a educação era muito perto de ser gratuita. Eu fui para a faculdade, em 1945, em uma universidade da Ivy League, a Universidade da Pensilvânia, onde a taxa de matrícula foi de US$ 100. Isso talvez desse US$ 800 dólares hoje. E foi muito fácil obter uma bolsa de estudos. Então era possível morar em casa, trabalhar e ir para a escola sem grandes gastos. Hoje a situação é ultrajante. Tenho netos na faculdade que têm que pagar sua matrícula e trabalhar, o que é quase impossível. Para os alunos essa é uma técnica disciplinar.

Outra técnica de doutrinação é cortar o contato entre o aluno e o professor. Isso se faz com turmas grandes, professores temporários que estão sobrecarregados e mal conseguem sobreviver com seu salário. E uma vez que você não tem nenhuma estabilidade no emprego não é possível construir uma carreira. Você não pode seguir em frente e planejar evoluir na carreira. Estas são todas técnicas de disciplina, doutrinação e controle.

É muito parecido com o que você esperaria encontrar em uma fábrica, onde os trabalhadores têm que ser disciplinados para serem obedientes e não, por exemplo, para desempenhar um papel na organização da produção ou do local de trabalho. Essas funções são exclusivas dos gerentes. Pois esse modelo foi transportado para as universidades. E creio que não deve surpreender ninguém, que já teve alguma experiência com a iniciativa privada, a forma como funcionam.

Sobre como o ensino superior deve ser
Antes de tudo, devemos deixar de lado qualquer ideia de que houve algo como uma “idade de ouro”. As coisas eram diferentes e, em certo sentido, melhores no passado, mas longe de serem perfeitas. As universidades tradicionais eram extremamente hierarquizadas, com muito pouca participação democrática na tomada de decisões. Uma parte do ativismo dos anos 1960 queria justamente tentar democratizar as universidades, incluindo, por exemplo, representantes dos estudantes nas comissões do corpo docente. Esses esforços tiveram algum grau de sucesso. A maioria das universidades tem algum grau de participação dos estudantes nas decisões da instituição. Penso que deveríamos nos mover nesta direção: uma instituição democrática, onde as pessoas envolvidas (professores, alunos e funcionários) participam na definição das políticas da instituição e de como elas são executadas. E o mesmo deveria valer para uma fábrica.

Estas não são ideias radicais, devo dizer. Elas vêm diretamente da tradição do liberalismo clássico. Se lermos, por exemplo, John Stuart Mill, uma figura importante dessa tradição, veremos que ele concordava com a ideia de que os locais de trabalho deveriam ser administrados pelas pessoas que trabalham neles. Isso seria sinônimo de liberdade e democracia (ver, por exemplo, de John Stuart Mill, Princípios de Economia Política, livro 4, cap.7)

Podemos encontrar essas mesmas ideias nos Estados Unidos. Tomemos o caso dos Cavaleiros do Trabalho (Knights of Labor, primeira organização trabalhista nacional importante da história dos EUA, fundada em 1869 - NT). Um de seus objetivos declarados era “estabelecer instituições cooperativas, que tenderão a substituir o sistema de salários com a intordução de um sistema industrial cooperativado”. Ou ainda em alguém como John Dewey, filósofo “mainstream” do século 20, que defendeu não só uma educação voltada a desenvolver a independência criativa nas escolas, mas também o controle das indústrias pelos trabalhadores, o que ele chamou de “democracia industrial”.

Para Dewey, enquanto as instituições cruciais da sociedade (como produção, comércio, transporte e mídia) não estiverem sob o controle democrático, então a “política (será) a sombra projetada sobre a sociedade pelos grandes negócios” (“A Necessidade de um novo partido”, 1931). Essa ideia quase elementar, que tem raízes profundas na história dos Estados Unidos e no liberalismo clássico, deveria ser uma espécie de segunda natureza para as pessoas que trabalham e ser aplicada igualmente para as universidades.

Há algumas decisões em uma universidade onde não é o caso de ter (transparência democrática) porque, por exemplo, é preciso preservar a privacidade do aluno. Existem vários tipos de questões sensíveis, mas na maioria da atividade normal da universidade não há razão para a democracia direta não ser considerada legítima e útil. No meu departamento, por exemplo, por 40 anos tivemos representantes dos estudantes participando de reuniões do departamento.

"Governança compartilhada" e controle dos trabalhadores
A universidade é, provavelmente, a instituição em nossa sociedade que está mais próxima da ideia de um controle democrático dos trabalhadores. Dentro de um departamento, por exemplo, é normal que um professor possa determinar uma parte substancial de como será seu trabalho: o que vai ensinar, quando, como deve ser o currículo. A maioria das decisões sobre o trabalho real do departamento passa pelos professores. Há, é claro, um nível superior de questões que não fica sob seu controle. Pode-se indicar alguém para lecionar, digamos, e essa recomendação pode ser rejeitada pelos reitores ou administradores. Isso não acontece com muita frequência, mas pode acontecer. E isso sempre tem a ver com questões mais estruturais que, embora sempre tenham existido, representavam um problema menor quando os professores participam da administração.

Sob sistemas representativos, você tem que ter alguém fazendo o trabalho administrativo, mas esses mandatos devem ser revogáveis em algum momento. Isso ocorre cada vez menos. Existem cada vez mais administradores profissionais, em vários níveis, tomando decisões cada vez mais distantes do controle do corpo docente. Eu mencionei antes o livro “The Fall of the Faculty”, de Benjamin Ginsberg, que entra em muitos detalhes sobre como isso funciona em universidades como John’s Hopkins, Cornell e algumas outras.

Enquanto isso, o corpo docente se vê cada vez mais reduzido à categoria de trabalhadores temporários que têm a garantia de uma existência precária, sem perspectiva de evoluir na carreira. Eu tenho conhecidos que são efetivamente professores permanentes, mas eles não têm esse status na prática, tendo de se aplicar a cada ano de modo a serem nomeados novamente. Essas coisas não deveriam acontecer. E a situação dos auxiliares foi institucionalizada: eles não fazem parte do corpo de tomada de decisões e não tem segurança no emprego, o que só amplia o problema. Esse pessoal também deveria ser integrado ao processo de tomada de decisões, uma vez que fazem parte da universidade.

Portanto, há muito o quê fazer, mas podemos entender facilmente porque essas tendências estão se desenvolvendo. Isso tem a ver com a imposição de um modelo de negócio em quase todos os aspectos da vida. É a ideologia neoliberal sob a qual a maior parte do mundo tem vivido há 40 anos. Ela é muito prejudicial para as pessoas e não encontra resistência na maioria dos casos. Só duas regiões conseguiram escapar dela: a Ásia Oriental, onde ela nunca predominou, e a América do Sul, nos últimos 15 anos.

Sobre a alegada necessidade de “flexibilidade”
“Flexibilidade” é um termo que é muito familiar para os trabalhadores na indústria. Parte daquilo que costuma ser chamado de “reforma trabalhista” consiste em fazer o trabalho mais “flexível”, ou seja, fazer com que seja mais fácil contratar e demitir pessoas. É, mais uma vez, uma forma de garantir a maximização de lucro e de controle. “Flexibilidade”, supostamente, é uma coisa boa, assim como a “maior insegurança dos trabalhadores”. Deixando de lado a indústria, onde é exatamente isso o que ocorre mesmo, mas universidades não há justificativa para esse tipo de prática.

Consideremos o caso de um curso com baixo número de matriculados. Isso não é um grande problema. Uma de minhas filhas ensina em uma universidade e me disse que sua carga horária sofrerá alteração porque um dos cursos que estava sendo oferecido teve poucos matriculados. Ok, o mundo não acaba por causa disso. O professor ou professora pode dar um curso com uma metodologia diferente ou buscar outra alternativa. As pessoas não têm que ser jogadas fora ou ficar inseguras por causa da variação do número de alunos matriculados em um curso. Há várias possibilidades de ajuste para essa situação. A ideia de que o trabalho deve atender às condições de “flexibilidade” é apenas mais uma técnica padrão de controle e dominação. Por que não dizer que os administradores devem ser jogados fora se não há nada para se fazer naquele semestre? A mesma situação se aplica aos altos executivos das indústrias: se o trabalho tem que ser flexível, o que dizer da gestão? A maioria deles é bastante inútil ou até prejudicial. Então vamos nos livrar deles. E você pode continuar assim.

Para tomar uma notícia dos últimos dias, que tal Jamie Dimon, CEO do banco JP Morgan Chase? Ele teve um aumento bastante substancial, quase o dobro de seu salário, por gratidão por ter salvo o banco de acusações criminais que teriam levado seus executivos para a cadeia. Conseguiram escapar com apenas US$ 20 bilhões em multas por atividades criminosas. Bem, eu posso imaginar que se livrar de alguém assim pode ser útil para a economia. Mas não é disso que as pessoas estão falando quando falam sobre a “reforma trabalhista”. São as pessoas que trabalham que devem sofrer. Devem sofrer por ter um trabalho inseguro, por não ter certeza sobre de onde sairá o pão de amanhã. Por isso, devem ser disciplinadas e obedientes e não fazer perguntas ou pedir por seus direitos. Essa é a maneira pela qual os sistemas tirânicos operam. E o mundo dos negócios é um sistema tirânico. Quando essa lógica é imposta às universidades, ela refletirá as mesmas ideias. Isso não é nenhum segredo.

Sobre a finalidade da Educação
Estes debates remontam ao Iluminismo, quando as questões de ensino superior e Educação de massa estavam sendo levantadas, e não mais apenas a educação para o clero e a da aristocracia. Havia basicamente dois modelos discutidos nos séculos 18 e 19, e foram discutidos com imagens bastante sugestivas. Uma imagem da Educação dizia que ela deve ser vista como um vaso que deve ser preenchido com água. Isso é o que chamamos hoje em dia de “ensinar para testar”: você derrama água dentro do vaso e, em seguida, ele devolve a água. Mas é um vaso muito permeável, como muitos de nós que passamos pela experiência da escola podemos constatar, já que podemos memorizar algo para um exame pelo qual não tínhamos muito interesse e, uma semana depois, não lembrarmos mais do que se tratava. O modelo do vaso nos dias de hoje é chamado de “nenhuma criança deixada para trás”, “ensinando para testar”, “corrida para o topo” e outras coisas semelhantes em universidades. Os pensadores iluministas eram contrários a esse modelo.

O outro modelo foi descrito pela imagem de uma corda estendida ao longo da qual o aluno progride em seu próprio caminho, sob sua própria iniciativa, talvez seguindo a corda, talvez decidindo ir para outro lugar, talvez levantando questões. Seguir a corda significa impor algum grau de estrutura. Assim, um programa de educação, seja ela qual for, um curso sobre física ou algo assim, não será um vale tudo, terá certa estrutura. Mas o seu objetivo é que o aluno adquira a capacidade de investigar, de criar, inovar e desafiar – isso é que é a Educação. Um físico mundialmente famoso foi questionado uma vez por um aluno sobre qual seria o conteúdo do curso no semestre. Sua resposta foi: “não importa o que vamos tratar, mas sim o que você vai descobrir”. Você ganha capacidade e auto-confiança para desafiar e criar. Dessa forma você internaliza o tema do estudo e pode ir em frente. Não é uma questão de acumular uma quantidade fixa de fatos que, em seguida, você pode descrever em uma prova e amanhã já não lembrar.

Estes são dois modelos bem distintos de Educação. O ideal iluminista foi o segundo e eu acho que é isso que devemos nos esforçar em buscar. Essa é a verdadeira Educação, do jardim de infância à pós-graduação. Na verdade, existem programas desse tipo, muito bons, para o jardim de infância.

Sobre o amor de ensinar
Nós certamente queremos que as pessoas, tanto professores como alunos, se envolvam em atividades que sejam gratificantes, agradáveis, estimulantes e excitantes. Eu realmente não acho que isso seja difícil. As crianças são criativas, curiosas, querem saber coisas, querem entender as coisas, e, a menos que sejam submetidas a um processo, essas coisas ficam com elas o resto de sua vida. Se você tem oportunidade de seguir esse compromisso, é uma das coisas mais gratificantes da vida. Isso é verdade se você é um físico pesquisador ou se você é um carpinteiro. Você está tentando criar algo de valor, lidando com um problema difícil e tentando resolvê-lo. Acho que isso é o que faz funcionar o tipo de coisa que você quer fazer.

Em uma universidade que funciona razoavelmente, você encontra pessoas que trabalham o tempo todo porque elas adoram o que estão fazendo. É o que elas querem fazer. Elas receberam a oportunidade, têm os recursos e são encorajadas a serem livres, independentes e criativos. O que poderia ser melhor? É o que elas gostam de fazer. E isso, repito, pode ser feito em qualquer nível.

Vale a pena pensar sobre alguns dos programas educacionais imaginativos e criativos que estão sendo desenvolvidos em diferentes níveis. Alguém me descreveu, dias atrás, um programa de ciência que está usando em escolas de ensino médio, por meio do qual os alunos são provocados por uma pergunta interessante: "Como pode um mosquito voar na chuva?" Essa é uma pergunta difícil quando você pensa sobre isso. Se algo batesse em um ser humano com a força com que um pingo de chuva bate em um mosquito ele seria achatado imediatamente. Então como é que o mosquito não é esmagado instantaneamente? E como pode o mosquito continuar voando? Responder essa pergunta é um trabalho muito difícil que envolve entrar em questões de matemática, física e biologia, questões suficientemente desafiadoras  para alguém querer encontrar uma resposta para elas.

Isso é o que a educação deve ser em todos os níveis, desde o jardim de infância. Existem programas de jardim de infância em que, por exemplo, é dada uma coleção de pequenos objetos para cada criança: seixos, conchas, sementes, e coisas assim. Em seguida, a classe recebe a tarefa de descobrir quais são as sementes. O processo começa com o que chamam de uma "conferência científica": as crianças conversam entre si e tentam descobrir quais são as sementes. Há alguma orientação de professores, é claro, mas a ideia é fazer com que as crianças pensem sobre o tema. Depois de um tempo, são feitas várias experiências para tentar descobrir quais são as sementes. Nesse ponto, cada criança recebe uma lupa e, com a ajuda do professor, olham para dentro das rachaduras da semente e encontram o embrião que faz a semente crescer. Estas crianças aprendem algo, realmente, não apenas sobre sementes e o que faz com que as coisas cresçam, mas também sobre como descobrir. Eles estão aprendendo a alegria da descoberta e da criação, e é isso o que você carrega de forma independente, para fora da sala de aula, para além de qualquer curso.

O mesmo vale para toda a Educação, até a pós-graduação. Em um seminário de pós-graduação razoável, você não esperar que os alunos baixem a cabeça para copiar e depois repetir o que você diz. Você espera que eles lhe digam quando você está errado ou que cheguem a novas ideias, para desafiar, para perseguir algum sentido que não tinha sido pensado antes. Isso é o que a verdadeira Educação é em todos os níveis, e é isso o que deve ser incentivado. Esse deveria ser o propósito da Educação. Não é para despejar informações na cabeça de alguém, que depois vai “vazar” esse conteúdo, mas para permitir que eles se tornem pessoas criativas, independentes, capazes de encontrar emoção na descoberta e criação e criatividade em qualquer nível ou em qualquer domínio de seus interesses.

Sobre o uso da retórica corporativa contra as corporações
Isso é como perguntar como você deve justificar, perante o proprietário de escravos, que as pessoas não devem ser escravos. Você está em um nível de investigação moral onde provavelmente é muito difícil encontrar respostas. Somos seres humanos com direitos humanos. É bom para o indivíduo, é bom para a sociedade e mesmo para a economia, em sentido estrito, que as pessoas sejam criativas, independentes e livres. Todos se beneficiam se as pessoas são capazes de participar, de controlar seu destino, de trabalhar uns com os outros. Isso pode não maximizar o lucro e dominação, mas por que deveríamos perseguir esses valores?

Conselhos para professor temporário organizar sindicatos
Você sabe melhor do que eu o que tem que ser feito, o tipo de problemas que você enfrenta. Então, vá em frente e faça o que tem que ser feito. Não se deixe intimidar, não se assuste, e reconheça que o futuro pode estar em nossas mãos, se estamos dispostos a compreendê-lo.

(*) Noam Chomsky OCCUPY: Class War, Rebellion and Solidarity é publicado pela Zuccotti Park Press .

[NT] A expressão “Adjunct Faculty” utilizada por Chomsky no texto original designa, nos Estados Unidos, os professores universitários contratados em regime temporário para dar um curso durante um semestre ou um ano, não possuindo qualquer estabilidade de emprego. Essa categoria não corresponde ao “professor adjunto” das universidades públicas brasileiras, que são concursados e possuem estabilidade de emprego.

Tradução: Louise Antonia León


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