Por Joana Tavares, de Belo Horizonte, para o Brasil de Fato
Uma das principais pensadoras sobre as cidades brasileiras, Ermínia
Maricato foi secretária executiva do Ministério das Cidades, formulou propostas
para a área urbana para o governo Lula e recentemente foi conselheira das
Nações Unidas para assentamentos humanos, além de dar aulas na USP e na Unicamp
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Arquiteta fala sobre o boom imobiliário, a mobilidade urbana e as
conquistas das manifestações |
Convidada para o Ciclo de Debates do Brasil de Fato MG, Ermínia fala
nesta entrevista sobre a crise nas cidades e as perspectivas abertas com as
manifestações de junho 2013.
O movimento das ruas de 2013 trouxe uma série de reivindicações, entre
elas a questão da ocupação do espaço urbano. Que conquistas esse movimento
trouxe?
Sabe quantas cidades brasileiras cancelaram o aumento nos transportes
com as mobilizações de junho de 2013? Mais de 100! E não foi só isso. Coisas
que estavam engavetadas, obras faraônicas inúteis e obras para automóvel andar
– que é o que mais se faz- muitas foram canceladas. Foi muita mudança a partir
de junho de 2013. A vida na cidade está insuportável e é impressionante como a
política urbana é invisível no Brasil. A mobilidade e o uso e ocupação do solo
são dois eixos fundamentais. Eu diria que depois das ultimas três décadas,
estamos, desde junho de 2013, começando a encarar a política de mobilidade
urbana. Mas a política fundiária urbana nós ainda não começamos a decifrar. Eu
diria que a própria sociedade suporta muito e conhece pouco. Nossas cidades são
um grande negócio na mão de poucos. Ou seja, lobbys muito bem organizados
funcionam pra levar a cidade para um caminho que não beneficia a maior parte da
população. É muito mais o caminho de quem tem lucro com a construção das
cidades. Sem dúvida nenhuma, eu diria que as três forças que comandam hoje o
crescimento das cidades são a indústria automobilística, que contraria o
interesse do transporte coletivo; o capital imobiliário e o capital de
construção. E tudo em consonância com o financiamento das campanhas eleitorais.
Podemos dizer então que não são cidades do povo e para o povo, e sim
pra quem especula esse mercado?
Não tenho a menor dúvida. Estudando as cidades por muitos anos, eu
diria que estamos num momento em que vivemos uma verdadeira tragédia das
cidades brasileiras, em que a função social das cidades, prevista na
Constituição brasileira; a função social da propriedade, prevista na
Constituição brasileira e no Estatuto da Cidade, estão em plano absolutamente
secundário.
O que é a função social da propriedade?
Nós conquistamos na Constituição de 1988 dois capítulos sobre as
cidades. E dentro desses capítulos está a proposta da função social da
propriedade. É exatamente a ideia de que o direito de propriedade privada é
limitado. Pelo quê? Pelo interesse coletivo. Todos nós pagamos pra construir a
estrutura das cidades – asfalto, drenagem, esgoto, iluminação pública,
transporte – tudo isso foi pago por todo mundo. E vai um sujeito e deixa um
lote vazio. Esse lote está cumprindo a função social que tem que ter numa
cidade? Não! A propriedade privada não é absoluta na Constituição, é
subordinada à função social. O direito à moradia é absoluto. No entanto, o
judiciário brasileiro trata o direito à moradia como relativo e o direito à
propriedade como absoluto.
Qual sua avaliação do programa Minha Casa, Minha Vida e das
intervenções em vilas e aglomerados?
Estamos vivendo no Brasil um boom imobiliário. Durante três anos,
houve um aumento de 154% no preço do metro quadrado de terrenos e imóveis em
São Paulo, e 181% no Rio de Janeiro. Os aluguéis cresceram na mesma medida.
Passamos duas décadas perdidas, sem investimento público nas cidades. Quando o
investimento vem, por meio dos PAC e Minha Casa, Minha Vida, aparecem também os
capitais, que tomaram conta das cidades. Com o apoio, é claro, de muitos do
executivo e legislativo. Isso acarretou em um boom imobiliário, que a
verticalização e a produção de moradia, ao invés de abaixarem o preço dos
imóveis, elevaram. Na medida em que não fizemos a reforma fundiária, não
implementamos a função social da propriedade urbana, todo o subsídio que está
sendo colocado pelo governo federal está indo para o preço da propriedade, para
os imóveis e para os terrenos. Isso está afastando a população mais pobre, que
não consegue o financiamento do Minha Casa, Minha Vida e que não está
conseguindo mais pagar o aluguel. O boom imobiliário não é progresso, ele
empobrece toda a cidade. Ele pega uma parte da riqueza produzida por toda a
população e a coloca no bolso de alguns, que são os proprietários imobiliários
e principalmente os incorporadores imobiliários.
Como é possível aliar esse gás novo de se pensar as cidades com o
acúmulo de organizações e movimentos que já faziam a disputa do modelo de
cidade, de Estado, de política?
Acho que a política urbana não é prioridade para os partidos, nem os
de esquerda, no Brasil. É preciso dar visibilidade para a luta de classes que
se dá em torno das cidades. O espaço urbano não é apenas palco para a luta de
classe, é objeto e agente. A gente precisa conhecer mais. Mais do que nunca, a
informação, o conhecimento é a libertação.
*Ermínia Maricato é Professora titular da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo)