Publicado por Marco Weissheimer Sul21, em 26 de junho de 2017
Erotização da infância, promoção dos valores e da cultura do
consumismo, exclusão social, coleta clandestina de dados, exposição a vários
tipos de práticas abusivas: essas são algumas das ameaças que habitam o reino
da publicidade voltada para o público infantil hoje. Nos últimos dez anos, a
legislação brasileira estabeleceu várias restrições a esse tipo de publicidade,
mas a diversificação e sofisticação tecnológica abriu novos espaços para várias
formas de propaganda subliminar que vão desde práticas clássicas de
merchandising a brinquedos tecnológicos capazes de gravar a conversar de
crianças e coletar esses dados.
“Uma pesquisa realizada no ano passado pelo Datafolha
mostrou que 60% da população brasileira adulta é favorável ao completo
banimento da publicidade voltada para o público infantil. Isso reflete muito o
que acontece dentro das famílias. No dia a dia, as crianças são bombardeadas
por esse assédio consumista. Isso vai bater nos pais, mães e em todas as
pessoas que são responsáveis por essas crianças que não conseguem se defender
sozinhas”, diz a advogada Isabella Henriques, diretora de Advocacy do Instituto
Alana, organização da sociedade civil criada em 1994 e que desenvolve programas
que buscam a garantia de direitos das crianças e de uma vivência plena da
infância.
Isabella Henriques esteve em Porto Alegre na última semana
participando do ciclo de Cine-Debates “Você tem fome de quê”, na Sala Redenção
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que homenageou os 10 anos do
Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Em entrevista ao Sul21, ela fala
sobre o trabalho desenvolvido na última década, sobre os avanços obtidos e
sobre o muito que ainda é preciso fazer para proteger a infância do incessante
desejo de lucro do mercado. “As crianças são atingidas com três objetivos: como
consumidoras hoje, como consumidoras adultas amanhã e como formadoras de
opinião dentro da família. Estima-se que as crianças influenciem em até 80% as
compras da família”, assinala.
Sul21: Qual o balanço do trabalho de dez anos do Instituto
Alana sobre questões relacionadas à publicidade dirigida às crianças, em
especial os casos de abuso nesta área?
Isabella Henriques: O programa Criança e Consumo nasceu da
observação de um problema que não afeta só o Brasil, a saber, o impacto da
publicidade sobre o público infantil (até 12 anos de idade) e as consequências
geradas por essa publicidade, seja no campo da saúde – como o aumento da
obesidade infantil, por exemplo -, seja no campo comportamental no interior das
famílias ou ainda em relação à violência alimentada por valores consumistas,
onde os bens materiais ocupam um lugar privilegiado. Um estudo recente
realizado entre adolescentes em conflito com a lei, na Fundação Casa, de São
Paulo, mostrou que metade deles estava lá por problemas envolvendo o tráfico de
drogas e metade por crimes patrimoniais, ou seja, roubo e furto. As pesquisas
também mostram que esses adolescentes entram no tráfico muito por conta do
desejo de receber recursos financeiros para poder adquirir uma roupa ou tênis
de marca, um boné, uma moto ou outros bens materiais.
Além disso, esse excesso de consumo traz também um problema
de insustentabilidade ambiental que também passa pela infância. Quando vemos o
volume de brinquedos que circula hoje estamos falando de muito plástico
produzido diariamente. Esse foi o contexto no qual começamos a trabalhar em
2006, quando começamos a planejar o programa Criança e Consumo. Naquele
momento, já existiam algumas pessoas que trabalhavam pontualmente com algum
desses temas. A nossa ideia, em um primeiro momento, foi juntar essas pessoas
em um conselho consultivo para fomentar a reflexão e o debate sobre os
malefícios da publicidade dirigida ao público infantil na sociedade, mais do
que promover mudanças de legislação ou obter vitórias no Judiciário. Queríamos,
e ainda queremos, chamar a atenção das pessoas para esses problemas para que
elas começassem a mudar seus hábitos de consumo e dar exemplos de comportamento
não consumista para as crianças.
Desde sempre entendemos que crianças, até 12 anos de idade,
não devem ser destinatárias de mensagens publicitárias, pois elas ainda estão
em um processo peculiar de formação, não só do ponto de vista físico, mas
também cognitivo e psíquico, onde ainda não têm todos os recursos para
responder esses estímulos ao consumo à altura. Por mais que uma criança de 10
ou 11 anos de idade já consiga reconhecer uma mensagem publicitária, coisa que
uma criança de 4 anos não consegue fazer, ela não entende o caráter persuasivo
das mensagens.
Ao longo desses dez anos de trabalho, o nosso projeto
atingiu todas as metas traçadas lá atrás, crescendo de uma forma que nem nós
esperávamos. Na nossa avaliação, isso ocorreu não apenas em função do nosso
trabalho ter sido bem planejado e executado, mas pelo fato de a sociedade
querer fazer essa discussão. Uma pesquisa realizada no ano passado pelo
Datafolha mostrou que 60% da população brasileira adulta é favorável ao
completo banimento da publicidade voltada para o público infantil. Isso reflete
muito o que acontece dentro das famílias. No dia-a-dia, as crianças são
bombardeadas por esse assédio consumista. Isso vai bater nos pais, mães e em
todas as pessoas que são responsáveis por essas crianças que não conseguem se
defender sozinhas.
O mercado muitas vezes diz que a responsabilidade é dos pais
e que eles, detentores do dinheiro, é que devem definir o que comprar ou não
determinado produto. A história verdadeira é que esse pai e essa mãe não têm
condições de enfrentar, em igualdade de condições, um investimento bilionário dirigido
sobre as crianças em todos os lugares. A publicidade fala com as crianças em
todos os lugares, a todo momento. Em todos os lugares em que elas estão, há
publicidade dirigida ao público infantil, ainda que tenhamos, no Brasil, uma
legislação bastante rigorosa neste sentido. Como sofrem esse problema no
dia-a-dia, os pais e as mães apoiam a nossa causa e o nosso trabalho.
Sul21: Em termos concretos, o que se conseguiu neste período
de trabalho?
Isabella Henriques: Um dos resultados mais importantes foi
ter colocado esse tema na agenda de debates da sociedade e dos meios de
comunicação. Ele chegou a ser tema de redação do Enem há alguns anos,
impactando diretamente todos os jovens que fazem redação, assim como seus
familiares, professores e jovens que realizaram a prova nos anos seguintes. Em
2014, houve a aprovação da resolução 163 pelo Conselho Nacional dos Direitos
das Crianças e Adolescentes (Conanda) que clarificou ainda mais o teor da
legislação brasileira. Essa resolução definiu que uma publicidade que tenta
persuadir uma criança a consumir um determinado produto é abusiva. Mais
recentemente, tivemos vitórias muito expressivas no Superior Tribunal de
Justiça (STJ), órgão máximo para resolver questões relativas à legislação
federal.
A partir de 2006, o Instituto Alana começou a fazer uma
série de denúncias sobre práticas publicitárias que considerava abusivas. Essas
denúncias foram sendo acolhidas pelos órgãos competentes que as levaram ou para
uma esfera administrativa, como o Procon, para a aplicação de uma multa, ou
para a esfera judicial, ingressando com uma ação civil pública. Essas ações
foram passando da primeira para a segunda instância e chegaram ao Superior
Tribunal de Justiça. Nos dois primeiros casos que chegaram lá, o STJ entendeu
que as empresas deveriam ser condenadas.
Sul21: Que casos foram esses?
Isabella Henrique: Estou falando de campanhas publicitárias
da Bauducco e da Sadia realizadas há cerca de dez anos. Isso indica que a
tendência que já estava aparecendo nos estados, em primeira e segunda
instância, se consolida no Superior Tribunal de Justiça. Isso é muito
importante. Do ponto de vista legal, a gente sabe que só temos o cumprimento de
uma legislação quando ela passa a ser fiscalizada e quando está presente a
certeza da punição daqueles que a violarem.
Sul21: A maioria das denúncias feita pelo instituto até aqui
envolve a área da alimentação?
Isabella Henriques: Não. Tem muita denúncia na área da
alimentação, mas não só nela. Há várias denúncias envolvendo publicidade de
brinquedos, ações de marketing realizadas em escolas e outros tipos de prática.
Tem de tudo. O mercado que fala com a criança é muito vasto. As empresas da
área da alimentação já estão envolvidas neste debate, há muitos anos, mundo
afora. A relação da obesidade infantil com a publicidade de alimentos
ultraprocessados, com excesso de sódio, açúcar, gordura saturada, bebidas de
baixo valor nutricional – leia-se, refrigerantes – já foi pacificada pela
pesquisa científica. As empresas nem negam mais essa relação da publicidade com
a obesidade.
O debate que existe hoje é em que medida a publicidade é um fator
preponderante neste processo. O que o mercado alega é que a publicidade é um
fator pequeno neste processo, entre muitos outros. Nós defendemos que não é um
fator menor e que, muitas vezes, é definidor no desenvolvimento da obesidade
infantil.
Algumas pesquisas mostram que se, simplesmente fosse banida
a publicidade desses produtos alimentícios, a obesidade infantil diminuiria em
até 20%, sem que nenhuma outra política pública fosse implementada. No caso do
Brasil, estamos falando de 15% de crianças com obesidade e 30% com sobrepeso.
Em termos absolutos, temos, portanto, cerca de 5 milhões de crianças com
obesidade infantil. Não se trata daquela criança que “está gordinha”, como se
costuma dizer, mas de crianças que já estão com um problema grave de saúde, que
é a porta de entrada das chamadas doenças crônicas não transmissíveis, que são
a principal causa de morte no Brasil. Então, essa publicidade vai acabar
gerando um gasto público enorme na Saúde pública e também na Previdência, pois
essas crianças vão virar adultos obesos que sairão do mercado de trabalho mais
cedo por problemas de saúde.
Nós fazemos denúncias em várias áreas, mas os casos
envolvendo alimentos acabam ganhando maior visibilidade e tem um entendimento
mais pacificado nos tribunais. O Judiciário ainda tem certa dificuldade de
entender que uma publicidade de brinquedo, por exemplo, é abusiva. Há uma
dificuldade de entender o dano psicológico e cognitivo que é mais complexo de
se medir. Estamos falando da formação de valores consumistas e materialistas na
sociedade. Ainda que isso não seja tão concreto, como aparece no caso da
obesidade, é possível ver as consequências disso na formação da sociedade.
Temos objetos de desejo sendo mudados a cada semana, pois a publicidade se
renova a cada semana. Assim, hoje eu quero essa boneca, amanhã eu quero outra e
assim por diante.
A ideia é ter um consumidor eternamente desejante que nunca
está satisfeito. O mercado não quer um consumidor satisfeito que compre uma
geladeira na expectativa de que ela vai durar vinte anos ou mais. Ele quer
consumidores desejantes e insatisfeitos, sempre a procura de um novo
lançamento. Para tanto, procura formar as crianças, desde pequenas, nesta
lógica. As crianças são atingidas com três objetivos: como consumidoras hoje,
como consumidoras adultas amanhã e como formadoras de opinião dentro da
família. Estima-se que as crianças influenciem em até 80% as compras da
família.
Sul21: Hoje, além da publicidade tradicional na televisão,
rádio e veículos impressos, temos uma profusão de plataformas e formas
diversificadas de novas linguagens publicitárias. Isso torna mais complexo esse
trabalho de identificação de práticas abusivas, não?
Isabella Henriques: Sim. No caso do Brasil, talvez ainda
demore um pouco para aquela propaganda tradicional dos intervalos de programas
de televisão deixar de existir, mas já um consenso no mercado de que ela está
com os dias contados. Ela vai deixar de existir. Hoje temos empresas que
propiciam a televisão por demanda, de modo que a criança pode assistir seu
desenho animado sem nenhum tipo de publicidade. Como é que a publicidade vai
falar com a criança neste caso.
Ela estará dentro do desenho na forma de um
merchandising, com um personagem tomando um picolé da marca “x” ou algo do
tipo. Essas práticas são muito mais perniciosas, na medida em que são muito
mais difíceis de serem distinguidas pelas crianças e identificadas como
mensagens publicitárias, que é o já acontece na internet e nos jogos
eletrônicos. A criança pode conseguir identificar um banner, mas quando a
mensagem publicitária aparece sob a forma de um conteúdo da programação, a identificação
é bem mais difícil. Hoje, a publicidade está em todos os espaços.
Com o crescimento desta discussão no Brasil houve uma
mudança muito grande do comportamento do mercado que saiu um pouco dos veículos
tradicionais e foi para outras plataformas, o que inclui também espaços como as
escolas que passaram a ser muito procuradas para ações de marketing mascaradas
como ações educativas. Há uma gama imensa de empresas, de todas as áreas,
fazendo isso. Temos a Tang, por exemplo, falando da importância da atividade
física e promovendo a venda do seu suco. Ou a Danone falando da importância do
consumo de lácteos e promovendo atividades educativas sobre a alimentação. A
escola é um ambiente mais difícil de ser fiscalizado. Para saber o que está
sendo veiculado na televisão, basta você sentar e gravar os programas. O que
acontece dentro das escolas está dentro dos muros das mesmas. Quem sabe o que
está acontecendo é quem está lá dentro, professores e diretores. Nem os pais
sabem direito o que acontece lá dentro. Às vezes ficam sabendo só depois e aí
recebemos a denúncia. Nosso foco é conversa com a escola e denunciar a empresa.
Esse tipo de ação já foi condenado pela ONU que, em seu
relatório sobre direitos culturais, traz recomendações aos países para que
proíbam por completo a publicidade para públicos menores de 12 anos e, em
alguns casos, de 16 anos. Essa recomendação diz expressamente que a escola tem
que ser um espaço livre de ambiente mercadológico de marcas e publicidade.
Como você referiu, essa publicidade se sofisticou. Um
exemplo disso é o fenômeno dos youtubers mirins, crianças que viraram
celebridades com números absurdos de seguidores pelo país inteiro. Essas
crianças não estão mais só gravando aqueles vídeos com brincadeiras como faziam
no início. Elas estão anunciando, estão sendo contratadas por empresas para
fazer merchandising no meio da fala delas. Elas mostram produtos, falam de
marcas. Existem alguns vídeos chamados de “recebidos”, onde elas exibem os
produtos que recebem. Então, essa publicidade se dá por meio de contratos
firmados com as empresas ou elas simplesmente mandam seus produtos para serem
exibidos. Meninos e meninas fazem isso. Essa prática já se sofisticou a ponto
de as crianças gravarem dentro de estabelecimentos comerciais.
Sul21: Estamos falando de crianças com que idade, neste
caso?
Isabella Henriques: Estamos falando de crianças desde os 5
anos de idade, tanto quem está no vídeo como quem está assistindo. Existem
youtubers mirins muito novos que vão crescendo e os seus canais vão se
modificando, assim como a sua audiência. É óbvio que pais e mães não querem o
mal para seus filhos. Muitas vezes, a família acha que a criança está em um
ambiente protegido, livre de problemas mais graves como a pedofilia. No
entanto, a criança está sendo totalmente bombardeada pela publicidade. Para não
falar de uma situação que é nova e ainda incipiente no Brasil que é a coleta de
dados de crianças na internet.
Do mesmo modo que ocorre conosco, que ainda
assinamos termos de uso em aplicativos autorizando acesso a nossos dados. Nos
Estados Unidos, há uma legislação que proíbe a coleta de dados de crianças com
menos de 12 anos de idade. Aqui no Brasil não temos uma legislação específica
como essa. Esses dados estão sendo coletados aqui no Brasil? Se estão, quem
está coletando? Esses dados serão vendidos?
Essa é uma discussão que vai muito além da questão do
consumo. No plano estrito do consumo, uma das conseqüências dessa coleta de
dados é que a criança começa a receber publicidade direcionada. Nós, adultos,
já conhecemos bem essa experiência. Às vezes, você está na frente do computador
e fala com alguém que está pensando em comprar um carro ou trocar um óculos. Em
seguida, aparece uma publicidade sobre esses produtos na sua tela. É algo
incrível. Estão lendo a minha mente? Não, estão escutando o que estamos falando
e estamos autorizando isso na hora em que assinamos aqueles termos de uso em
diversos aplicativos. Isso está acontecendo com crianças também. Há brinquedos
tecnológicos como a boneca Cayla, proibida recentemente na Alemanha, por
possuir um microfone e uma conexão Bluetooth embutidos. Essa boneca conversava
com as crianças e captava a conversa delas, sem que elas tivessem a menor noção
de que isso estava ocorrendo. O que a empresa fabricante pretende fazer com
esses dados captados? Utilizá-los para fabricar novos brinquedos?
Sul21: Além das empresas que fabricam produtos destinados ao
público infantil, temos também o setor da publicidade e da mídia que, muitas
vezes, invoca o tema da liberdade de expressão para contestar proibições e
limitações neste tipo de propaganda. A resistência desse setor segue forte?
Isabella Henriques: Nós tivemos um avanço aí nestes últimos
dez anos. Há um consenso hoje em torno da necessidade de proteger a criança da
publicidade comercial. O dissenso está em que medida isso deve ocorrer. A falta
de limites estava gerando uma situação de muita violação de direitos. O mercado
também foi obrigado a dar alguma resposta a esse quadro do ponto de vista da
comunicação. Essa questão da liberdade de expressão era bastante utilizada lá
por 2007, 2008 pelas agências de publicidade, anunciantes e veículos. Hoje já
não é mais assim. A liberdade de expressão tem limite e esse limite está posto
pela Constituição. No caso da publicidade, ele é regulado pela ordem econômica.
A publicidade tem um único objetivo: vender! Nem deveria se falar em liberdade
de expressão em relação à publicidade. Concedendo que há uma produção artística
na produção de uma publicidade, ainda assim a liberdade de expressão aí tem
limites. Temos que colocar na balança os direitos das crianças de um lado e o
das empresas fazerem propaganda de seus produtos do outro.
Esse argumento tem sido pouco utilizado hoje em dia. A
discussão é muito mais profunda e de melhor qualidade também. Há algumas
organizações que chegaram agora neste debate e ainda repetem esse argumento da
liberdade de expressão. Mas quem participou desse debate na última década, já
está com outro entendimento, entre outras coisas porque a população também
exige que essas práticas sejam fiscalizadas. Os veículos estão tentando se
adaptar a essa nova realidade.
Sul21: Considerando essa necessidade de adaptação, é
possível dizer que houve de fato um avanço de consciência por parte do mercado,
ou ele está, fundamentalmente, tentando descobrir outras possibilidades de
vender os seus produtos?
Isabella Henriques: Essa é uma pergunta difícil de
responder. Eu acredito, pela experiência que tive ao longo dos últimos dez anos
em torno desse debate, que as empresas são formadas por pessoas que tem suas
famílias e seus filhos, e que elas nem sempre tem a mesma posição da
instituição para a qual trabalham. Eu já ouvi muitos comentários de apoio neste
sentido. Isso, de alguma forma, faz com que as empresas também comecem a mudar
um pouco de posicionamento, pois os seus funcionários também estão sofrendo
essas conseqüências dentro de suas casas. Por outro lado, é fato que as
empresas querem vender e, por isso, seguem procurando brechas para fazer isso
acontecer. E é muito mais fácil vender para uma criança do que vender para um
adulto. Não é à toa que o mercado vai com tanta força falar com o público
infantil. Se uma publicidade diz para uma criança que ela precisa daquele
produto para ser feliz, ela vai querer aquele produto. Aí que entra o papel da
fiscalização e do Judiciário.
Tem gente que procura minimizar essa influência dizendo que,
na sua infância, viu muita publicidade e isso não trouxe grandes problemas. As
realidades são distintas, o volume de publicidade hoje é imensamente maior e
muita coisa que era considerada normal no passado hoje é proibido, como a
publicidade de tabaco, por exemplo. Se olharmos a publicidade do tabaco ao
longo da história, veremos uma publicidade inclusive com o uso de crianças. Há
uma delas que costumamos usar como exemplo e que mostra uma mãe com um bebê
recém-nascido no colo e uma frase dizendo algo como: “entre uma mamada e outra,
alivie o seu estresse fumando um cigarro”. Hoje, isso seria considerado criminoso.
Na época em que foi veiculada, era considerado algo normal e rotineiro. Então,
estamos às voltas também com uma mudança de paradigma que tem o seu próprio
tempo.
Sul21: Como você definiria a legislação brasileira nesta
área?
Isabella Henriques: Acho que ela é muito boa. Ela já proíbe
o direcionamento da publicidade para a criança. O artigo 36 do Código de Defesa
do Consumidor proíbe a publicidade que não é clara. Se o destinatário da
publicidade não a identifica como publicidade, ela é ilegal. Toda a publicidade
que fala com crianças de até seis anos de idade, que não consegue identificá-la
como tal, ela já é ilegal. Se ela está dentro de um conteúdo, de uma forma mais
sofisticada, que mesmo uma criança com mais de seis anos não consegue
identificar como publicidade, ela também é ilegal. Nosso legislador proibiu a
propaganda clandestina e subliminar que não vem a público dizendo “eu sou uma
publicidade”. Até o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária), que é formado pelo mercado, já se posicionou contra o
merchandising voltado ao público infantil, o que é um grande avanço.
Já o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor proíbe a
publicidade abusiva. Entre as práticas proibidas, expressamente está lá aquela
que se aproveita da deficiência de experiência e de capacidade de julgamento da
criança. A legislação tem um conceito aberto, mais subjetivo, sobre o que é
essa deficiência, cuja avaliação depende de cada caso. Isso dá margem a
discussões. Nós temos um entendimento bastante restritivo desse artigo. Se o
considerarmos junto com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente
e o artigo 227 da Constituição Federal que diz que a criança deve ter seus
direitos garantidos com prioridade absoluta pela família, pelo Estado e pela sociedade,
isso basta. Os recentes entendimentos do STJ caminham nesta direção,
considerando que o simples fato de uma publicidade se dirigir à criança já a
torna abusiva. Esse é o grande avanço que tivemos nestes últimos dez anos.
Por outro lado, é um fato que, hoje, ao assistirmos à
programação de um canal infantil, temos ainda uma avalanche de publicidade, o
que reforça a necessidade de seguirmos debatendo esse tema. Um canal como a
Disney, por exemplo, não tem publicidade, mas toda a sua programação está
vinculada com produtos. Essa é uma discussão mais profunda. Então, temos
avanços, mas também temos muito trabalho pela frente.
Sul21: Há quem considere que as crianças nascidas na era
digital estariam de certo modo mais preparadas para enfrentar essa nova
realidade. Você concorda com isso?
Isabella Henriques:
Esse é um tema super espinhoso. Fala-se muito hoje sobre os nativos digitais.
De fato, a criança nasce hoje já muito envolvida com a tecnologia digital. Ela
pode saber fazer um upload, um download, produzir um conteúdo e várias outras coisas.
Ela pode dominar a tecnologia como ferramenta, mas não tem capacidade ainda
para se defender de abusos. Hoje, um dos maiores consumos de internet das
crianças está nas redes sociais. Ainda que o Facebook, por exemplo, seja apenas
para maiores de 12 anos de idade, muito por conta da legislação americana sobre
a coleta de dados, há muitas crianças menores de 12 dentro do Facebook.
Essas crianças não tem a dimensão da vastidão da rede e da
natureza da internet como uma praça pública. Os filtros existentes não são
suficientes para protegê-las de abusos. Qualquer um pode fazer um print de uma
foto e publicar. Então, a criança pode saber como usar determinada ferramenta,
mas ainda está desenvolvendo a sua capacidade de cognição e de aprendizado. Já
é difícil para nós, adultos, lidar com essa realidade. Todo dia vemos o caso de
alguém que se deu mal porque fez um determinado comentário em uma rede social
ou porque postou alguma coisa. Esse debate é muito mais amplo e complexo,
envolvendo também questões como a erotização precoce. Já há pesquisas mostrando
que a publicidade que fala com meninas tem uma linguagem diferente da que fala
com meninos. E não é que uma seja toda rosa e a outra toda azul. A publicidade
que fala com meninas é muito erotizada, trabalhando o tempo todo com a ideia de
sedução. As diferenças são bem mais sutis e as crianças estão numa condição
muito vulnerável neste ambiente.
Convido todas as pessoas a acessarem o site do Alana e,
dentro deste, o dos diversos programas do instituto, entre eles o Criança e
Consumo que traz muitas informações sobre esse debate e também tem um espaço
para denúncia de práticas abusivas.