Se você, a exemplo dos professores que fizeram galhofa sobre homem
"mal-vestido" no aeroporto, já se fez esta pergunta, parabéns: você
não aprendeu nada
Por Matheus
Pichonelli, na Carta
Capital, em 7/2/2014
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Professora universitária faz galhofa diante do rapaz que foi ao aeroporto sem roupa de gala. É o símbolo do país que vê a Educação como fator de distinção, e não de transformação |
O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se
encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano
que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um
sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de
uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não
seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as
sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais
condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um
vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de
condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.
Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e
resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha
gente 'revoltada' porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê
eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria
proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a
funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.
Mais à frente, ele contava como a moça havia se transformado na peça
central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia
margem para cortar curtos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A
ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia
humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um
senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em
Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste
discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase
desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos
parte e nem nos damos conta.
Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que
lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem
festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da
caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas
vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de passagem,
da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos filhos campeões, há
uma mensagem quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o
funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém.
Pode morrer em paz”.
Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor
é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas de
texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.
O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no
Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a
pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for
preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que
entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível
socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua
realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino
superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que
não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que
não lê jornal.
Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade
sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no
Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.
Por isso comemora-se também à saída da faculdade. Já vi, por exemplo,
coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia
de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de
uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura de
um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a
batalha só seria ganha quando deixássemos de ser um país em que ter dente é, por
si, um privilégio.
Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma
lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por
aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como
lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou dar banho em
nossos filhos: aproveitamos até as últimas conseqüências o gosto de dizer
“estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que
chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi
batata-fria e ele me entregou mandioca frita? Ao lembrá-lo de que é ele quem
serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma
mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de
serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma
serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.
Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma
praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando
a lavadora, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como
uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos.
Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência
do que o episódio da professor que postou fotos de um “popular” no saguão do
aeroporto e se questionaram no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o
glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que se
deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem
pode e quem não pode pagar para andar de avião).
Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços
cativos (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de
distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste
que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a
detonação, pela base e pela Educação, dos resquícios de uma tragédia histórica
construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.