Por Itamar Melo, para a Zero Hora*
Como muitos alunos do ensino público, Gabrielle Mendes Ferreira, 14
anos, chegou pouco antes das 8h de quinta-feira à escola. Como poucos, veio
preparada para uma jornada que se estenderia até o fim da tarde. A garota da
Ilha da Pintada frenquenta o 8º ano em um dos primeiro estabelecimentos a
adotar a Educação em tempo integral como decorrência de uma lei estadual
sancionada no começo deste ano, que obriga o Rio Grande do Sul a implantar o
modelo em metade dos colégios de Ensino Fundamental.
O dia de Gabrielle na Escola Estadual Maria José Mabilde teve inicio
com dois períodos de informática. Após o lanche no refeitório, vieram mais duas
horas de matemática. Do meio-dia às 13h, ela fez intervalo para o almoço, feito
na escola. A tarde começou com Educação física e inglês. Às 15h20min, foi ao
laboratório para a aula de química. Foi a sua preferida.
“Estudamos os rins”, justificou Gabrielle.
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A jornada de Gabrielle na escola (Fotos Zero Hora) |
Às 17h, ela colocou um casaco, abriu o garda-chuva e foi para casa, depois
de nove horas de colégio. A mãe, Rosângela Mendes, 33 anos, está satisfeita com
a nova rotina:
“Se ela ficasse em casa, ficaria vendo TV ou fazendo outra coisa que
não fosse estudar. Na escola, não é reforço, é aula mesmo.”
A tendência é de que jornadas como a de Gabrielle virem rotina em todo
o Brasil. O novo Plano Nacional de Educação estabeleceu metas para a ampliação
do ensino em tempo integral ao longo de toda a Educação Básica, enquanto a rede
privada se mobiliza para oferecer cargas de aula cada vez mais altas.
Em 26 de junho, enquanto a grande preocupação dos brasileiros era a
partida contra o Chile pelas oitavas de final da Copa, um fato de relevância
muito maior passou despercebido de quase todo mundo. Na edição daquele dia, o
Diário Oficial da União publicou a sanção, pela presidente Dilma Rousseff, do
novo Plano Nacional de Educação (PNE).
O documento estabelece que até 2024 metade das escolas públicas do
país deve garantir ensino em tempo integral. Em 10 anos, 25% dos estudantes
terão de passar pelo menos sete horas por dia em sala de aula.
Levando em consideração os números de hoje, isso significaria oferecer
a modalidade em mais de 75 mil escolas, abrangendo 10 milhões de alunos. O
Ministério da Educação conta com a ajuda dos royalties do petróleo para elevar
de 6,4% para 10% a proporção do PIB investido no ensino, outra meta do PNE, de
forma a dispor de recursos para disseminar o tempo integral.
— Nenhum país do mundo chegou a se transformar em uma nação
desenvolvida sem que as crianças tenham dois turnos na escola — defendeu Dilma.
No Rio Grande do Sul, onde funcionam 7,5 mil escolas públicas, o PNE é
reforçado por uma lei em vigor desde janeiro, que determinou a oferta de Educação
integral em 50% dos estabelecimentos estaduais de Ensino Fundamental, no prazo
de 10 anos. A Secretaria Estadual da Educação (SEC) começou a implantação neste
ano. Já há 12.375 alunos da rede que passam cerca de oito horas por dia na
escola, em 51 colégios espalhados por 38 cidades.
Uma das principais preocupações dos educadores é que, ao ampliar a
carga horária, os sistemas de ensino se limitem a oferecer, no tempo extra,
oficinas, atividades artísticas ou modalidades esportivas que estejam
descoladas do currículo normal. A ideia é evitar o modelo assistencial, no qual
o aluno fica na escola apenas para não estar na rua, e também o sistema de
turno integral de colégios privados, em que os pais podem pagar um valor extra
para que as crianças permaneçam durante o contraturno, muitas vezes em
atividades recreativas.
— O tempo integral é uma necessidade. Mas existe um risco imenso. O
PNE só fala em aumentar as horas, mas Educação integral não é ocupar o tempo
das crianças. É preciso fazer uma transformação que coloque o turno e o
contraturno em um mesmo projeto
pedagógico — afirma Maria Amabile Mansutti, coordenadora técnica do Centro de
Referência em Educação Integral.
A diretoria-adjunta do departamento pedagógico da SEC, Rosa Mosna,
afirma que essa preocupação é levada em conta no modelo em implantação no
Estado. Foi desenvolvida uma proposta pedagógica específica, em que as
disciplinas já existentes nas escolas de um turno só são mantidas, com a mesma
carga horária, e atividades curriculares novas, obrigatórias ou eletivas, são
adicionadas.
Além de português, matemática e história, os alunos têm agora aulas de
iniciação à pesquisa, direitos humanos, leitura e produção textual. A
orientação é que as escolas mesclem as disciplinas antigas e as novas ao longo
do dia, para que os estudantes consigam enxergar que se trata de um todo.
— Muitos alunos acham que a escola tradicional é chata. Não dá para
simplesmente dobrar as horas de matemática, de português. Ninguém merece.
Procuramos organizar atividades novas, em que se trabalha por meio da pesquisa,
de forma mais flexível, leve e lúdica, mas que também se relacionam com os
conhecimentos de matemática e de português — diz Rosa Mosna.
Desafio para todos na Ilha da Pintada
Uma das escolhidas para implantar o tempo integral, a Escola Maria José
Mabilde, na Ilha da Pintada, em Porto Alegre, deve fechar 2014 com 1.600 horas
de aula — o dobro do exigido por lei. Os 178 alunos chegam às 8h e permanecem
até às 17h. Têm à disposição café da manhã, almoço e dois lanches. O processo
ainda é de adaptação, com alguns percalços. A diretora, Jurema Garzella, diz
que só em agosto o novo currículo será adotado de forma completa.
Para dar conta da duplicação das horas de ensino, os 19 professores em
atuação no ano passado revelaram-se insuficientes. Cinco deles tiveram a carga
horária dobrada e alguns docentes que atuavam fora de sala de aula assumiram
disciplinas. A SEC enviou oito novos profissionais, cinco deles na semana
passada, mas ainda falta um. Algumas classes foram instaladas em uma área
coberta do pátio, para driblar a escassez de salas.
— É um desafio, porque temos de elaborar uma identidade nova para a
escola. Os professores sabem trabalhar, mas ainda estão se acostumando com o
integral. Não digo que ocorrem bate-bocas, mas eles têm de fazer o planejamento
integrado, e a tendência é cada um achar que seu jeito é o certo. Mas está
havendo uma troca de experiência muito rica, e a gente vê um dizendo para o
outro: é, você tinha razão — conta a diretora.
A escola da Ilha da Pintada foi escolhida porque já tinha uma
experiência de tempo ampliado, por meio do programa federal Mais Educação, que
garantia a presença de oficineiros. Essa oportunidade entusiasmou a aluna de 8º
ano Camila Machado, de 13 anos.
Em 2013, quando teve de mudar-se para Guaíba por causa do trabalho da
mãe, a estudante não se adaptou ao novo colégio. Insistiu tanto que a família
voltou a residir na Ilha da Pintada. Durante um tempo, a mãe, Daise da Silva
Machado, 34 anos, conformou-se em viajar todos os dias a Guaíba para que a filha
estudasse no colégio:
— O sacrifício valia a pena. O turno integral favorece em todos os
sentidos. O ensino é melhor e dá mais tranquilidade para a gente, que vai
trabalhar sabendo que o filho está aproveitando bem o tempo.
Camila conta que às vezes tem de estudar no almoço ou no recreio, por
causa do horário apertado.
— É puxado, é aula mesmo, o dia inteiro. Acho que vai ser uma coisa
muito boa para o meu futuro — prevê.
Das 51 escolas a seguir o novo modelo, 29 já tinham, pelo menos em
alguma medida, o tempo integral, uma herança de projetos antigos. Outras 22
foram incorporadas, de acordo com a estrutura e a aceitação da comunidade. A
SEC ainda não fez os cálculos, mas estima que uma escola no novo modelo custe
75% a mais. O ritmo de implantação ainda está em estudo.
— Não basta um canetaço. Nossa estrutura não é como a de países que já
pensaram a escola para o tempo integral. Nós concebemos uma escola pela metade
— diz Rosa Mosna.
*Clique aqui para ver a série
de matérias da Zero Hoje sobre o Plano Nacional de Educação e a escola de tempo integral.