Por Rubem Alves
Tenho de confessar que o carnaval me
cansa. O desfile das escolas de samba me causa um tédio sem fim. As plumas
coloridas, as fantasias caras, o ritmo das baterias, o virtuosismo dos
sambistas, o tremor das nádegas e seios nenhuma emoção me provocam a não ser o
tédio. O que desfila no sambódromo é de uma mesmice chatíssima, que se repete a
cada ano. Quem viu um viu todos.
Isso não se deve a nenhuma implicância
minha com o carnaval. Eu até que gostaria de sentir entusiasmo. Pensei, então,
que, quem sabe, um carnaval diferente... Quando eu era menino e estudava piano
aprendi a tocar uma versão facilitada do Carnaval de Veneza. Fiquei sabendo,
então, que em Veneza há um carnaval famoso. Mas nenhuma ideia eu tinha de como
ele era, e ainda não tenho. Exceto que se trata de uma imensa orgia de
máscaras. Veneza é uma cidade de máscaras que se vendem o ano inteiro, e eu
mesmo comprei algumas.
As máscaras fascinaram Bachelard. Sobre
elas escreveu um ensaio em que chama a nossa atenção para o fato de que, antes
de existirem como objetos usados para esconder o rosto, as máscaras moram
dentro de nós como entidades do nosso psiquismo. Todas as vezes que olhamos
para um rosto e ele nos parece misterioso, lugar onde um segredo se esconde,
estamos pressupondo que ele não é um rosto mas uma máscara, uma dissimulação.
Isso já é sabido de longa data. Está dito
na palavra “pessoa”, que vem do latim persona, que quer dizer “máscara de
teatro”. O teatro é algo que precisa de um público para existir. Sem um público
ele não tem sentido. As personae, as máscaras de teatro, portanto, são usadas
para um público. O público vai ao teatro para ver a “máscara”, a
“representação” de um papel. Não lhe interessa o rosto verdadeiro por detrás da
máscara. Esse rosto desconhecido é ignorado pelo público, não tem nome. São as
máscaras que têm nome. O meu nome, Rubem Alves, não é o nome do meu eu
verdadeiro. É o nome da máscara pela qual sou reconhecido pelo público. É o
nome do papel que esse público pede que eu represente. A aplicação do nome
persona, máscara de teatro, a nós mesmos, implica no reconhecimento implícito
de que a vida é uma farsa, uma representação, um carnaval de Veneza.
Não somos nós que pintamos as nossas
máscaras. Álvaro de Campos dizia que ele era o “intervalo” entre o seu desejo,
o seu eu verdadeiro e aquilo que os desejos dos outros haviam feito dele, a
máscara. Essa máscara que se chama pessoa e que é representada pelo meu nome é
uma evidência de que eu não me pertenço. Pertenço ao público. Pela máscara
torno-me um peixe apanhado nas malhas das redes do público. Pela máscara não
sou meu. Sou deles. Aí eles me fritam do jeito que desejam.
Há um princípio da medicina homeopática
que diz que o semelhante se cura pelo semelhante. Sugiro aos psicodramatistas
que o carnaval de Veneza é uma terapia coletiva em que esse princípio homeopático
é usado: máscaras se curam com máscaras. Máscaras de papel e tinta para nos
libertar da tirania da máscara colada em nosso rosto. Ponho a máscara de papel
e tinta sobre a máscara de carne e ninguém fica sabendo quem sou. Fico
desconhecido, sem nome. Estou livre do público. Posso deixar que o meu eu
verdadeiro saia.
Mas as máscaras de papel e tinta padecem
de grave limitação. Chega sempre a hora em que elas têm de ser tiradas. Sobre
isso se escreveu um conto, não me recordo o autor. Marido e mulher procuraram
conventos onde ficar a salvo das tentações do carnaval. Representavam fielmente
o papel que estava escrito nas máscaras coladas sobre os seus rostos. Mas
dentro de suas malas os seus eus verdadeiros haviam colocado secretamente
máscaras de papel e tinta: escondidos atrás delas eles seriam livres, pelo
menos durante os curtos dias de carnaval.
As despedidas de marido e mulher nem
bem haviam terminado e já as mãos procuravam as máscaras. Adeus conventos! Três
dias com máscaras de papel e tinta, três dias livres das imposições das
máscaras de carne, três dias sem nome, três dias de liberdade. Marido e mulher,
escondidos atrás das máscaras, descobriram parceiros maravilhosos com quem
dançaram, brincaram e tiveram prazeres nunca tidos um com o outro. Mas,
finalmente, a hora de se tirarem as máscaras. Meia-noite: tiradas as máscaras
marido e mulher se descobrem um nos braços do outro...
Carnaval é usar máscara para tirar a
máscara. Trata-se de um artifício complicado, que só se usa diante daqueles que
é preciso enganar para se ser livre.
Mas não será possível simplesmente tirar
a máscara de carne e osso e sermos nós mesmos, sem nenhum disfarce? É essa
busca que se encontra descrita num dos poemas de Alberto Caeiro.
“Procuro
despir-me do que aprendi,/ procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,/ e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar
minhas emoções verdadeiras e ser eu, não Alberto Caeiro...” O poeta não quer
ser Alberto Caeiro. Alberto Caeiro é máscara, um nome, criatura do público, um
impostor que se alojou no lugar do se eu verdadeiro. Também o Amilcar Herrera
não queria ser Amilcar Herrera. Queria poder tirar a máscara, esquecer-se do
seu nome, ser ele mesmo, um ser que ninguém conhecia...
O que é que se vê quando se tira máscara?
Quem responde é Álvaro de Campos. “Depus a máscara e vi-me no espelho./ Era a
criança de há quantos anos./ Não tinha mudado nada.../ Essa é a vantagem de
saber tirar a máscara./ É-se sempre criança...”
A criança sempre horroriza o público. A
criança ainda não aprendeu o papel, não usa máscaras, não participa da farsa,
não representa. Seu rosto e o seu eu são a mesma coisa. A qualquer momento a
verdade que não devia ser dita pode ser dita pela sua boca.
As máscaras de carnaval podem ser colocadas
e tiradas pela própria pessoa. Mas a máscara colada no nosso rosto só pode ser
retirada por uma outra pessoa. Ela só se desprega da nossa pele quando tocada
pelo toque do amor. E assim sabemos que estamos amando: quando, diante daquela
pessoa, a máscara cai e voltamos a ser crianças...
Publicado no Correio Popular, 18/02/1996