Por Joseph Stiglitz | Tradução: Cristiana Martin
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No cartaz: “Pessoas antes das patentes. Projeta o acesso aos medicamentos acessíveis” |
Em meio à guerra contra a desigualdade,
nos acostumamos tanto com más notícias que quase entramos em choque quando
surge algo positivo. E depois que a Suprema Corte dos EUA decidiu que gente
rica e grandes corporações têm o direito constitucional de comprar as eleições,
quem esperaria que este tribunal produzisse alguma notícia boa? Mas uma
decisão, ao fim do primeiro semestre, resultou em algo mais precioso que
somente dinheiro: o direito de viver.
À primeira vista, a ação da Association
for Molecular Pathology (Associação para Patologias Moleculares) contra a
corporação Myriad Genetics parece um mistério científico. A corte decidiu, sem
unanimidade, que os genes humanos não podem ser patenteados – embora o DNA
sintético, criado em laboratório, possa.
Mas o buraco é muito mais embaixo: as
bases e os problemas desta questão são muito mais profundos do que é comumente
entendido. Foi uma batalha entre aqueles que privatizariam a boa saúde,
tornando-a um privilégio a ser desfrutado na proporção da riqueza, contra os
que veem a saúde como um direito de todos – e um componente central de uma
sociedade justa e de uma economia que funciona direito. De uma maneira ainda
mais ampla, tem a ver com a maneira pela qual a desigualdade está definindo a
política, as instituições legais e a saúde da população.
Diferentemente das batalhas amargas entre
Samsung e Apple, nas quais os juízes, enquanto mostram-se pretensamente
equilibrados parecem na verdade sempre estar a favor do time da casa, este caso
foi maior que apenas uma grande batalha entre gigantes corporativos. É uma
lente de aumento, por meio da qual podemos enxergar os efeitos perniciosos e de
longo alcance da desigualdade; qual o sentido de uma vitória sobre o
comportamento normal das corporações; e – não menos importante – o quanto ainda
ariscamos perder nestas batalhas.
É evidente que a corte e os partidos não
enxergam os problemas desta maneira em seus argumentos e decisões. A Myriad
Genetics, uma empresa originária de Utah, tinha isolado dois genes humanos –
BRCA1 e BRCA2. Eles são importantes porque podem conter mutações capazes de
significar uma pré-disposição ao câncer de mama. Conhecer sua presença é
crucial para diagnósticos em fase inicial, e também para prevenção. A Myriad
Genetics já tinha obtido as patentes para esses genes. O fato de “possuir” os
genes deu a ela o direito de privar outras companhias de testá-los. A grande
questão desta disputa era aparentemente técnica: quando isolados, genes que
podem surgir naturalmente são algo que possa ser patenteado?
Mas as patentes têm implicações
devastadoras também no mundo real, uma vez que elas mantém o preço dos
diagnósticos extremamente alto. Testes genéticos podem ser realizados a custo
baixo. Uma pessoa pode ter todos os seus 20 mil genes sequenciados por
aproximadamente 1.000 dólares – para não falar de testes muito mais baratos,
para patologias específicas. A Myriad, no entanto, cobrava cerca de US$ 4.000
pelo teste de apenas dois genes. Cientistas argumentaram que não havia nada
inerentemente especial ou superior nos métodos da Myriad – eles simplesmente
examinavam os genes que a companhia alegava possuir, e o fazia apoiada nos
dados que não estavam disponíveis às outras, por conta de suas patentes.
Horas após a Suprema Corte ter decidido
em favor dos queixosos – um grupo de universidades, pesquisadores e advogados
de pacientes, representados pela União das Liberdades Civis Americanas (American
Civil Liberties Union) e pela Fundação da Patente Pública (Public Patent
Foundation) –, outros laboratórios rapidamente anunciaram que também começariam
a oferecer os exames para os genes do câncer de mama. Isso deixou claro que a
“inovação” da Myriad era identificar genes existentes e não desenvolver um
exame para eles (a Myriad não cessou de lutar neste caso e ainda moveu duas
novas ações judiciais neste mês que visam impedir as companhias Ambry Genetics
e Gene by Gene de realizar seus próprios exames de BRCA, sob o argumento de que
violam outras patentes que supostamente detém).
Não deveria ser muito surpreendente o
fato de a Myriad fazer todo o possível para evitar que a receita proveniente
desses exames sofresse concorrência. Depois de se recuperarem parcialmente de
uma queda de aproximadamente 30%, logo após a decisão da corte, as ações da
companhia ainda continua cerca de 20% abaixo do que eram. A empresa possuía os
genes e não queriam ninguém invadindo sua propriedade.
Ao obter a patente, a Myriad,
como a maioria das corporações, parecia mais motivada pela maximização dos
lucros do que por salvar vidas. Se realmente estivessem preocupadas com este
segundo aspecto, ela poderia e oferecer exames menos caros, além de encorajar
outras companhias a desenvolver exames melhores, mais precisos e mais baratos.
Sem surpresa, a companhia alegou que suas patentes, que permitiram preços
monopolísticos e práticas excludentes, eram essenciais para incentivar futuras
pesquisas. Mas quando os efeitos devastadores destas patentes ficaram claros e
ela permaneceu inflexível no exercício dos direitos de seu monopólio, as
pretensões de que agia em favor do bem comum não foram mais capazes de
convencer.
A indústria farmacêutica, como sempre,
alegou que sem a proteção de patentes não haveria incentivos para pesquisas –
portanto, todos perderiam. Procurei a argumentação de um expert (pro bono)
junto à corte. Ele explica por que os argumentos da indústria estão errados e
por que estas patentes, e outras similares, na verdade impediram a inovação, ao
invés de fomentá-la. Outros grupos que apresentaram argumentos a favor dos
pleiteantes, como a Associação Norte Americana de Aposentados (AARP), apontaram
que as patentes da Myriad impediam os pacientes de obter uma revisão de seus
exames ou mesmo uma confirmação de diagnóstico. Recentemente, a Myriad
comprometeu-se a não impedir estes exames – um compromisso revertido ao mover
ações judiciais contra a Ambry Genetics e a Gene by Gene.
A Myriad negou o exame a duas mulheres,
ao rejeitar o seguro de saúde delas – segundo os pleiteantes, pelo fato de o
valor do reembolso ser muito baixo. Outra mulher, após uma rodada de exames da
Myriad, foi obrigada a tomar decisões agonizantes sobre fazer uma única ou
dupla mastectomia ou ter seus ovários removidos, com completa falta de
informação. O custo de um exame adicional de mutação de BRCA era inacessível (a
Myriad cobra US$ 700 a mais por informações que as orientações nacionais dizem
que devem ser fornecidas aos pacientes). E a revisão dos exames era impossível
devido às patentes da Myriad.
A boa notícia que vem da Suprema Corte é
que, nos Estados Unidos, os genes não poderiam ser patenteados. De certa
maneira, a corte devolveu às mulheres algo que elas pensavam que já tinham.
Isto teve duas grandes implicações práticas: uma é que agora pode haver
competição para o desenvolvimento de exames mais precisos e menos caros para o
gene. Poderemos novamente ter um mercado competitivo movendo a inovação. A
outra é que mulheres pobres terão chances mais igualitárias de vida – neste
caso, de diagnosticar o câncer de mama.
Mesmo sendo extremamente importante, esta
vitória é apenas um fragmento do cenário de propriedade intelectual que é
pesadamente definido pelos interesses corporativos – frequentemente
norte-americanos. Os Estados Unidos tentaram aplicar seu regime de propriedade
intelectual a outros países, através da Organização Mundial do Comércio (OMC) e
de outros acordos bilaterais e multilaterais de comércio.
Atualmente, o mesmo
objetivo é perseguido por meio do chamado Acordo Estratégico Trans-Pacífico de
Associação Econômica (“Trans-Pacific Partnership”). Acordos de comércio são,
teoricamente, um importante instrumento de diplomacia: a integração no comércio
promove outros acordos, em outras dimensões. Mas as tentativas do escritório de
representação do comércio dos Estados Unidos de convencer os outros estão
voltadas para os que consideram os lucros corporativos mais importantes do que
a vida humana. Isto assinala o posicionamento internacional estadunidense: o
estereótipo do norte-americano estúpido.
O poder econômico normalmente fala mais
alto do que valores morais. Em muitas instâncias nas quais os interesses
corporativos americanos prevalecem, em relação à propriedade intelectual,
nossas políticas ajudam a aumentar a desigualdade no exterior. Na maioria dos
países é muito parecido com os Estados Unidos: as vidas da população mais pobre
são sacrificadas no altar dos lucros corporativos. Mas mesmo naqueles onde,
digamos, o governo proveria um exame como o da Myriad com preços acessíveis
para todos, há um custo: quando um governo paga preços de monopólio por exames
médicos, ele gasta dinheiro que poderia ser gasto para pagar o salvamento de
outras vidas.
O caso da Myriad representou a materialização
de três mensagens-chave de meu livro O Preço da Desigualdade. Primeiro,
argumento que a desigualdade social foi um resultado não somente das leis
econômicas, mas também de como formatamos nossa economia – por meio da
política, incluindo quase todos os aspectos no nosso sistema legal. Aqui, é
nosso regime de propriedade intelectual que contribui desnecessariamente à
forma mais grave de desigualdade. O direito à vida não deveria estar
subordinado à possibilidade de pagar por ele.
O segundo é que alguns dos aspectos mais
perversos de criação de desigualdade em nosso sistema econômico são um
resultado de rent-seeking [busca de renda]. São lucros e desigualdade gerados
pela manipulação social, ou das condições políticas, para obter um pedaço maior
da fatia de bolo da economia – ao invés de fazer o bolo crescer. E a parte mais
injusta desta apropriação de riqueza ocorre quando os lucros de quem está no
topo são gerados às custas de quem está na base. Os esforços da Myriad
satisfaziam ambas condições: os lucros que a companhia auferia pela cobrança
dos exames não adicionavam nada ao crescimento e ao dinamismo da economia e,
simultaneamente, diminuíam a riqueza dos que não podiam pagar por eles.
Enquanto todos os segurados contribuíam
para os lucros da Myriad – os “premiums” tinham que subir de categoria e
milhões de norte-americanos de média renda e sem seguro tinham que pagar os
preços monopolísticos da Myriad – os dessegurados na base da pirâmide eram os
que tinham que pagar os preços mais altos. Com o preço inacessível do exame,
foram eles que enfrentaram maior risco de morte precoce.
Os defensores dos direitos de propriedade
intelectual dizem que este é simplesmente o preço que temos que pagar para
produzir inovação que a longo prazo salvarão vidas. Seria uma troca: a vida de
mulheres relativamente pobres hoje versus a vida de muitas outras mulheres, em
algum momento do futuro. Mas esta alegação está errada em vários aspectos.
Neste caso em particular, é especialmente errado pelo fato de que havia grandes
chances de estes dois genes serem isolados (“descobertos”, na terminologia da
Myriad) sem muita demora, como parte do projeto global “Projeto Genoma Humano”.
Mas é errado em outros aspectos também. Pesquisadores genéticos argumentaram
que esta patente impedia o desenvolvimento de melhores exames e também
interferia no avanço da ciência. Todo o conhecimento é baseado em conhecimentos
anteriores. Se eles tornam-se menos acessíveis, a inovação fica comprometida. A
própria descoberta da Myriad – como qualquer outra ciência – usou tecnologias e
ideias que também foram desenvolvidas por outras companhias. Se estes
conhecimentos prévios não estivessem disponíveis publicamente, a Myriad não
poderia ter feito o que fez
E este é o terceiro grande tema. Chamei
meu livro de O preço da desigualdade para enfatizar que ela não é apenas
moralmente repugnante mas também tem custos materiais. Quando o regime legal
que governa os direitos de propriedade intelectual é precário, ele facilita o
rent-seeking – e o nosso regime é precário, embora esta e outras decisões
recentes da Suprema Corte conduziram a um regime que já é melhor do que poderia
ser. E o resultado é que existe, na verdade, menos inovação e mais
desigualdade.
Na verdade, um importante insight de
Robert W. Fogel, historiador econômico e ganhador de um prêmio Nobel que morreu
no mês passado, foi que a sinergia entre melhoras na saúde e a tecnologia são
responsáveis por uma grande parte da explosão do crescimento econômico desde o
século XIX. É por isso que os regimes de propriedade intelectual que criam
rendas monopolistas e bloqueia o acesso à saúde provocam desigualdades e
dificultam o crescimento de forma generalizada.
Existem alternativas. Advogados de
direitos da propriedade intelectual têm superestimado seu papel de promotora da
inovação. A maioria das inovações-chave – das ideias básicas que levaram aos
computadores aos transistores, lasers ou a descoberta do DNA – não foram
motivadas por lucros financeiros. Foram provocadas pela busca do conhecimento.
É evidente: recursos precisam estar disponíveis.
Mas o sistema de patentes é
apenas uma maneira, e frequentemente não é a melhor, de prover esses recursos.
As pesquisas financiadas pelos governos, fundações e o sistema de premiações
(que oferece um prêmio a quem faz a descoberta e depois a torna amplamente
acessível usando o poder dos mercados para benefícios reais) são alternativas,
com maiores vantagens e sem as desvantagens do aumento de desigualdades do
atual sistema de direitos de propriedade intelectual.
O esforço da Myriad para patentear o DNA
humano foi uma das piores manifestações das desigualdades no acesso à saúde e
das sociais nos Estados Unidos. O fato de a decisão da Suprema Corte ter
mantido direitos e valores preciosos é motivo para um breve alívio. Mas é
apenas uma vitória na grande luta por uma sociedade e economia mais
igualitárias.