por Matheus Pichonelli
Crianças subestimadas e professores
treinados para colorir a realidade: o assustador universo escolar retratado em O
Que Traz Boas Novas
A curta sinopse no site do cinema me preparou
para encarar um drama ao estilo esfola-alma: um professor da Argélia cai de
paraquedas em uma turma do (equivalente ao) ensino fundamental em Montreal, no
Canadá, para substituir uma professora que, dias antes, morrera de forma
trágica. À primeira vista, O Que Traz Boas Novas, filme de Philippe Falardeau
em cartaz em São Paulo, parecia mais uma história sobre superação de primeiras
impressões, preconceitos, unificação de valores e conquistas que só a escola
consegue desencadear.
Era também, mas não só.
A sala de aula, como se sabe, é um
laboratório de conflitos humanos que, cedo ou tarde, desembocam no que
equivocadamente costumamos chamar de vida real. Em 2008, Laurent Cantet
conseguiu fazer de Entre os Muros da Escola uma radiografia social a partir dos
desafios de um professor diante de uma geração assentada em uma nova dinâmica
de interlocução, tecnologias e valores. Surpreendentemente, O Que Traz Boas
Novas fez jus à tradição sem se apresentar apenas como um drama sobre alunos e
professores – nem apenas sobre um suposto choque cultural entre Ocidente e
Oriente no ambiente escolar.
O filme é, a bem dizer, um grande grito
contra uma forma sistemática, invisível e não-assumida de encarceramento adulto
e juvenil. Explico. Logo nas primeiras cenas, sabemos que a professora das
crianças, por motivos misteriosos, se enforcou durante o intervalo na sala de
aula. A sequência é um exercício desesperado dos adultos responsáveis pelas
crianças – direção, corpo docente, pais e funcionários – de descaracterização
da cena. Na impossibilidade de se trocar de sala, o local do crime recebe novas
tintas, nova posição de cadeiras e um novo professor, Bachir Lazhar (Mohamed
Fellag). A ele é dada a missão de evitar com que as crianças toquem no assunto.
A única profissional autorizada a lidar com elas é uma psicóloga de métodos
duvidosos que promete apagar as feridas do episódio. Aos demais, cabe agir mais
ou menos como os pintores que mudaram as cores das paredes da sala: dourar a
pílula e tentar seguir adiante.
Mas como, se naquela sala de aula alguém,
aparentemente querida pelos alunos, acabava de cometer um ato de violência
extrema?
Ao longo do filme, o novo professor terá
como desafio driblar o luto da escola e firmar uma autoridade mambembe,
frequentemente contestada pelo fato de não ser daquele país. Não demoramos para
perceber que, como aqueles estudantes, ele também guarda traumas mal
assimilados de seu passado na Argélia. E que mal consegue manifestar com
palavras, gestos e expressões o que o levou a fugir do seu local de origem. É
como se o silêncio, o rodeio, o disfarce e o autoengano fossem capazes de
superar a tragédia humana. Não são, e quem dá o primeiro sinal de que é
possível (e necessário) entrar no assunto com a seriedade que a realidade pede
são as próprias crianças.
Ao longo das aulas, o episódio do suicídio começa a
aparecer nas falas, redações e até nas brincadeiras infantis. É quando Bachir
percebe que elas querem – e precisam – se comunicar de alguma forma. E que se
comunicar sobre a violência vivenciada não era uma mera reprodução de uma
realidade violenta. Para garantir que isso aconteça sem que ninguém exploda, é
preciso ter uma habilidade cirúrgica. Não porque as crianças sejam incapazes de
entender o que aconteceu, mas porque a realidade exige, e exigirá sempre, e em
qualquer idade, a maestria de uma precisão cirúrgica: tudo é frágil, tudo é
explosivo, tudo põe a qualquer momento tudo a perder. Ao mesmo tempo, nada tem
resposta clara e única como em um teste de múltipla escolha.
Saber disso não é excitar a crueldade,
mas agir com uma honestidade mínima, parece dizer o diretor. A redoma envolta
das crianças que o professor Bachir tentará a todo custo destampar tem uma base
anterior à tragédia. Por exemplo: a certa altura, o professor é repreendido
pelos pares por apresentar textos de Honoré de Balzac em sala de aula. Parece
um detalhe, mas não é: a todo instante há alguma autoridade sentada sobre o
manual de conduta a dizer o que pode e o que não pode ser absorvido pelas
crianças.
O fosso artificial cavado entre elas e o suposto mundo real é uma
construção social, cuidadosa e fadada ao fracasso. E tem entre suas normas, no
caso do filme, uma regra draconiana: nenhum professor ou funcionário da escola
tem autorização para tocar no estudante. A regra que vale para um tapa como
vale para um abraço – e a certa altura um professor de educação física,
proibido de passar protetor solar em um aluno com queimadura de segundo grau,
confessa ter a impressão de lidar com elementos radioativos, e não com estudantes.
Na sala de Bachir, onde a professora
anterior se matou e todos tentam fingir que nada aconteceu, um estudante passa
boa parte das aulas estirado na carteira porque tem enxaqueca e sangramentos. O
professor em nada pode ajudar porque, em tese, deve evitar um vínculo de
proximidade acima do aceitável. (Qualquer semelhança não é mera coincidência:
aqui em São Paulo, policiais são proibidos de prestar socorro a vítimas da
violência urbana em nome da qualidade da investigação; o ato de jogar a água
suja com o bebê dentro, como se vê, é uma praga universal).
Essa impessoalidade forçada é
consequência, não causa, de uma incompetência mal disfarçada. Quando, no
ambiente escolar, criam-se regras inexistentes fora de seus domínios, a escola
passa a ser uma mera réplica artificial (portanto, descolada) da realidade, e
não parte englobada por uma realidade de bordas indefinidas. Tão indefinidas
que, entre quatro paredes, consegue agregar o drama de dois estágios
civilizatórios: entre a guerra fratricida na Argélia e o vazio em meio à
(aparente) plenitude material do Canadá, a banalização da vida opera em uma
estrutura elementar.
Tanto na História como nos pequenos relatos de tragédias
diárias, há duas formas de enfrentamento: o silêncio ou a compreensão. O problema
é que essas duas palavras não se combinam. Cabe à escola, e muitas vezes a um
único professor, a decisão de optar por um ou por outro (nesse sentido, o
professor Bachir faz do filme uma versão ao avesso de A Vida é Bela, de Roberto
Benigni).
Não é preciso ir longe, para compreender
o silêncio (na imprensa, nas escolas, nas grandes discussões) sobre o drama do
suicídio retratado pelo filme. Oficialmente, o medo é que uma simples notícia
funcione como um incentivo a novas decisões. Como no filme, o ato é relatado
com rodeios, um assunto-tabu sobre o qual ninguém ousa tocar, como se fosse
possível ignorar que toda semana há uma multidão de gente tomando suas últimas
decisões à beira de uma janela, sem que tenhamos coragem suficiente para
identificar uma suposta anomalia social desencadeada em um período de paz
aparente.
É parte da cultura do verniz, das
soluções para baixo do tapete, que o filme busca suscitar: ao esconder a
realidade, legamos ao mundo uma covardia institucionalizada, como se as
crianças – de 5, 10, 40 ou 80 anos – fossem eternamente incapazes de digerir uma
realidade não combinada nos contos de fada.
Fonte Carta Capital